Editorial 80


O órgão jurisdicional pode omitir-se no exame de uma questão. Omissão judicial é omissão no exame de uma questão. Isso não deveria acontecer, mas eventualmente acontece.

Há questões que são postas como fundamento para a solução de outras e há aquelas que são colocadas para que sobre elas haja decisão judicial. Em relação a todas haverá cognição (cognitio); em relação às últimas, haverá também iudicium. Todas compõem o objeto de conhecimento do magistrado, mas somente as últimas compõem o objeto de julgamento (thema decidendum). As primeiras são as questões resolvidas incidenter tantum; esta forma de resolução não se presta a ficar imune pela coisa julgada. O magistrado tem de resolvê-las como etapa necessária do seu julgamento, mas não as decidirá. São as questões cuja solução comporá a fundamentação da decisão. Sobre essa resolução, não recairá a imutabilidade da coisa julgada. Os incisos do art. 469 do CPC elucidam muito bem o problema: não fazem coisa julgada os motivos, a verdade dos fatos e a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo. Há questões, no entanto, que devem ser decididas, não somente conhecidas. São as questões postas para uma solução principaliter tantum: compõem o objeto do juízo.  Somente em relação a estas é possível falar-se de coisa julgada. É o que se retira do art. 468 do CPC: a decisão judicial tem força de lei, nos limites da lide deduzida e das questões decididas.

Pois bem.
Há, então, dois tipos de decisão omissa: a) aquela que não examinou um pedido (questão principal); b) a que não examinou algum fundamento/argumento/questão que tem aptidão de influenciar no julgamento do pedido (questão incidente), que efetivamente ocorreu.
No primeiro caso, não se pode dizer que a decisão tem um vício. Não há vício naquilo que não existe. Só tem defeito aquilo que foi feito, como disse Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado. 3ª ed. São Paulo: RT, 1983, t. 4, p.  13-14.). Se um pedido não foi examinado, não houve decisão em relação a esse pedido e, portanto, não se pode falar de vício (MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Item do pedido sobre o qual não houve decisão. Possibilidade de reiteração noutro processo”. Temas de direito processual – segunda série. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 247). Do mesmo modo, a solução dos demais pedidos, efetivamente resolvidos, não fica comprometida ou viciada pelo fato de um dos pedidos não ter sido examinado. Nesses casos, a decisão precisa ser integrada e não invalidada; não se pode invalidar o que não existe.

Tanto a decisão que não examina o pedido é, neste aspecto, uma não-decisão, que é plenamente possível a repropositura de demanda que contenha pedido já formulado, porém não examinado, na medida em que não se pode falar de coisa julgada em relação ao que não foi decidido e, pois, não existe. Não pode ficar imutável e indiscutível aquilo que não se sabe o que é, porque não é (não existe).

Assim, a não oposição de embargos de declaração contra decisão omissa em relação a um pedido não implica preclusão. Não há sequer a possibilidade teórica de alegar qualquer espécie de preclusão ou coisa julgada: se não houve decisão, a coisa julgada recairia sobre o quê? Imaginar-se-ia uma possível solução, tornando-a indiscutível? Qual: procedência, procedência parcial ou improcedência? “É ocioso salientar o que há de óbvio na asserção: coisa julgada não pode deixar de ser a coisa (res) que se julgou. Aquilo que não se julgou… não se converte, à evidência, em coisa julgada!” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Item do pedido sobre o qual não houve decisão. Possibilidade de reiteração noutro processo”, cit., p. 247)

Parece haver certo consenso em torno disso. Tratei disso mais amplamente em meu Curso de Direito Processual Civil, v. 2 (capítulo sobre a teoria da decisão judicial) e 3 (capítulo sobre os embargos de declaração).

Sucede que o STJ, recentemente, consolidou o entendimento de que “se o órgão julgador se omitir em estabelecer honorários advocatícios e a sentença transitar em julgado (julgamento final), estes não podem ser cobrados em ação própria” (Corte Especial, REsp. n. 886.178/RS, rel. Min. Luiz Fux, j. em 02.12.2009, julgamento pelo procedimento dos recursos especiais repetitivos; Corte Especial, EREsp n. 462.742/SC, rel. Min. Barros Monteiro, rel. p/ ac. Min. Humberto Gomes de Barros, j. em 15.08.2007, publicado no DJe de 24.03.2008; 1ª T., REsp n. 710.789/RS, rel. Min. Luiz Fux, j. em 09.09.2008, publicado no DJe de 08.10.2008). Entendeu-se que a oposição de embargos de declaração, no caso, é imprescindível, sob pena de preclusão.

A orientação do STJ não tem qualquer fundamentação.

Os argumentos examinados no texto não foram enfrentados. Trata-se de orientação manifestamente equivocada. Reconhece-se a indiscutibilidade de uma não-decisão. Há “coisa julgada” sem que a questão dos honorários advocatícios tenha sido julgada. Aceita-se um julgamento implícito denegatório dos honorários advocatícios, em ofensa clara à garantia da motivação das decisões judiciais e à exigência de certeza das decisões. Afirmou-se, inclusive, a possibilidade de ajuizamento de futura ação rescisória, sem que se saiba, entretanto, o que será alvo de rescisão.

Trata-se de uma decisão claramente equivocada do STJ.

Fredie Didier Jr.

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