De acordo com a nossa legislação, é possível, portanto, coexistirem ação coletiva e ação individual. O ajuizamento da ação coletiva não impede o prosseguimento da ação individual, que somente será suspensa a requerimento do indivíduo (art. 104 do CDC).
Desde a primeira edição do v. 4 do nosso Curso de Direito Processual Civil, dedicado ao estudo do processo coletivo, defendíamos que a jurisprudência deveria, de maneira criativa, dando concreção aos direitos fundamentais da efetividade da tutela jurisdicional, da duração razoável do processo e da segurança jurídica, encaminhar-se no sentido de reconhecer como de interesse público (não ficando na dependência da vontade do particular, que muitas vezes desconhece a existência de uma ação coletiva) a suspensão das ações individuais, se pendente ação coletiva que versa sobre direitos individuais homogêneos. Trata-se de uma exigência de ordem pública, não só decorrente da necessária racionalização do exercício da função jurisdicional, como forma de evitar decisões diversas para situações semelhantes, o que violaria o princípio da igualdade. A aplicação dessa regra, permitindo a suspensão dos processos individuais por prejudicialidade, conforme o dispositivo do art. 265, IV, a do CPC, já foi utilizada com sucesso em diversos precedentes do Rio Grande do Sul no caso dos expurgos inflacionários da poupança. Trata-se de evidente aplicação do princípio da adequação e da flexibilização dos procedimentos aos processos coletivos.
Trata-se de solução já existente no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade (art. 21 da Lei Federal nº 9.868/1999) e no âmbito do controle de constitucionalidade difuso exercido por meio de recurso extraordinário (art. 543-B, § 1º, CPC). Mesmo para quem não considera a ADC ou ADIN (ações de controle concentrado de constitucionalidade) espécies de ação coletiva, não haveria qualquer óbice à interpretação analógica.
O sistema jurídico brasileiro vem sofrendo diversas alterações ultimamente, exatamente para minimizar a possibilidade de decisões divergentes sobre a mesma questão de direito, envolvendo pessoas que estão em uma situação-de-fato tipo (contribuintes, servidores, segurados, consumidores etc.). Criou-se a súmula vinculante (art. 103-A, CF/88, introduzido pela EC nº 45/2004); permite-se o julgamento imediato de causas repetitivas (art. 285-A, CPC, acrescentado pela Lei Federal n. 11.277/2006); o STF vem dando eficácia extraprocessual às suas decisões proferidas em controle difuso de constitucionalidade etc.
A idéia serve a todo sistema jurídico que dê força vinculativa aos precedentes judiciais, notadamente aqueles proferidos por cortes superiores, o que é o nosso caso.
Convém lembrar que os arts. 543-B e 543-C, ambos do CPC, que cuidam do julgamento por amostragem de recursos extraordinários (recurso extraordinário para o STF e recurso especial para o STJ) em causas repetitivas, prevêem um novo caso de conexão no direito brasileiro: uma conexão por afinidade entre esses recursos. As causas repetitivas são exatamente aquelas em que os autores poderiam ter sido litisconsortes por afinidade, mas, por variadas razões, optaram por demandar isoladamente. De acordo com o modelo tradicional de conexão previsto nos arts. 103-105 do CPC, essas causas não poderiam ser consideradas conexas: não há pedido nem causa de pedir iguais. Também não há entre elas relação de prejudicialidade ou preliminaridade: a solução de uma em nada afeta a solução da outra. Trata-se de causas que se relacionam pela afinidade de algumas questões de fato ou de direito. Sucede que, em vez de essa conexão determinar a reunião dos recursos para processamento e julgamento simultâneos (como ocorre com a conexão para fim de modificação de competência, art. 103, CPC), outros são os efeitos jurídicos desta nova modalidade de vínculo entre causas: a) escolha de alguns recursos-modelo e b) sobrestamento dos demais processos para o julgamento por amostragem. De fato, não seria razoável que a conexão, no caso de demandas repetitivas, tivesse por efeito a reunião dos processos em um mesmo juízo, o que certamente causaria grande confusão e problemas para a solução dos litígios em tempo adequado. Mostra-se aqui, mais uma vez, a força do princípio da adequação, que impõe um processo diferenciado para o julgamento das causas de massa. É bom lembrar que conexão é um conceito jurídico-positivo. No direito processual civil brasileiro, é bem aceita a idéia de que há várias espécies de conexão: modificação de competência (art. 103, CPC), pressuposto da reconvenção (art. 315, CPC), formação do litisconsórcio (art. 46, II e III, CPC), conexão por acessoriedade (art. 108, CPC), conexão para processamento de demandas incidentais (art. 109, CPC), conexão por sucessividade (art. 475-P, II, CPC) etc. Cada uma dessas modalidades de conexão tem os seus próprios pressupostos e os seus efeitos jurídicos típicos.
Essa ideia foi encampada, recentemente, pelo Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de recursos especiais repetitivos (art. 543-C, CPC), que, como se sabe, tem natureza de precedente judicial vinculante (art. 543-C, § 7º, CPC).
No REsp. n. 1.110.549-RS, rel. Min. Sidnei Beneti, j. em 28.10.2009, decidiu-se que ajuizada ação coletiva atinente a macro-lide geradora de processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais, no aguardo do julgamento da ação coletiva.
Essa suspensão pode dar-se de ofício pelo órgão julgador. Conforme acentua o relator, a faculdade de suspensão, nos casos multitudinários abre-se ao Juízo, em atenção ao interesse público de preservação da efetividade da Justiça, que se frustra se estrangulada por processos individuais multitudinários, contendo a mesma e única lide, de modo que válida a determinação de suspensão do processo individual, no aguardo do julgamento da macro-lide trazida no processo de ação coletiva.
Realmente, de nada adiantaria não autorizar a suspensão ex officio, quando os recursos especiais provenientes destas causas repetitivas poderiam ter o seu curso sobrestado, ex officio, por decisão do ministro do STJ (art. 543-C, CPC). Era preciso dar coerência ao sistema. Mais uma vez, é preciso ceder a palavra ao Min. Sidnei Beneti: Note-se que não bastaria, no caso, a utilização apenas parcial do sistema da Lei dos Processos Repetitivos, com o bloqueio de subida dos Recursos ao Tribunal Superior, restando a multidão de processos, contudo, a girar, desgastante e inutilmente, por toda a máquina jurisdicional em 1º Grau e perante o Tribunal de Justiça competente, inclusive até a interposição, no caso, do Recurso Especial. Seria, convenha-se, longo e custoso caminho desnecessário, de cujo inútil trilhar os órgãos judiciários e as próprias partes conscientes concordarão em poupar-se, inclusive, repita-se, em atenção ao interesse público de preservar a viabilidade do próprio sistema judiciário ante as demandas multitudinárias decorrentes de macro-lides.
Deixou-se claro que esse entendimento não nega vigência aos arts. 51, IV e § 1º, 103 e 104 do Código de Defesa do Consumidor; 122 e 166 do Código Civil; e 2º e 6º do Código de Processo Civil, com os quais se harmoniza, atualizando-lhes a interpretação extraída da potencialidade desses dispositivos legais ante a diretriz legal resultante do disposto no art. 543-C do Código de Processo Civil, com a redação dada pela Lei dos Recursos Repetitivos (Lei n. 11.672, de 8.5.2008). A vítima não fica impedida de ajuizar a sua demanda, mas o processo respectivo poderá ser suspenso. Demais disso, poderá influenciar a decisão do processo coletivo, seja intervindo na qualidade de amicus curiae, o que já é possível no procedimento de julgamento dos recursos repetitivos (art. 543-C, § 4º, CPC), seja pela intervenção de que trata o art. 94 do CDC.
Deve-se apenas atentar para a duração da suspensão, que deve ser a menor possível, principalmente quando o objeto da ação civil pública envolver questão de fato cuja prova é meramente documental.
Essa decisão revela como é possível reconstruir o sistema jurídico a partir da interpretação correta dos textos normativos já existentes. Trata-se de uma das mais importantes decisões do STJ sobre a tutela jurisdicional coletiva e a tutela individual dos direitos individuais homogêneos. O STJ deu um grande passo na racionalização do sistema de tutela dos direitos, dando-lhe mais coerência e eficiência. Percebe-se que mudanças legislativas, às vezes, são desnecessárias; a mudança do repertório teórico do aplicador é muito mais importante. A decisão é bem-vinda e benfazeja.
Fredie Didier Jr.
Hermes Zaneti Jr.