Editorial 68

As considerações a seguir servem como atualização do v. 2 do meu Curso de direito processual civil, capítulo sobre a teoria da prova, item 8.3.


O art. 232 do Código Civil tem a seguinte redação: “A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame”. Como se pode notar, esse artigo não estabelece uma presunção legal, pois apenas autoriza o magistrado a tomar a recusa como indício. O artigo não tem muita utilidade, pois, de nada adianta o legislador “regrar” a presunção judicial, que é raciocínio do juiz. De todo modo, quando o órgão judicial, ex officio ou a requerimento do interessado, determinar a realização do exame médico, deve acrescentar, à intimação, a advertência de que a recusa poderá ser tomada como um indício suficiente para que se profira uma decisão que lhe seja desfavorável.


O legislador civil ratificou entendimento jurisprudencial já consolidado (v. p. ex., STF, HC n. 71.373), que permitia ao magistrado tomar a recusa a submeter-se ao exame como indício de que o fato que se queria provar com o exame realmente aconteceu. Essa opção é correta, pois torna desnecessária qualquer discussão sobre a obrigatoriedade de comparecimento da parte para a realização do exame: se não comparecer, presume-se, e está resolvida a questão.


A Lei n. 12.004/2009 acrescentou o art. 2º-A à Lei n. 8.560/1992. Esse novo dispositivo cuida da produção de provas na ação de investigação de paternidade. O parágrafo único deste artigo determina que “a recusa do réu em se submeter ao exame de código genético – DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório.” Em homenagem à igualdade, a regra deve aplicar-se, igualmente, a despeito da omissão legislativa, às ações de investigação de maternidade. Trata-se, agora sim, de uma presunção legal relativa. A relatividade da presunção constata-se do trecho final do texto normativo, que remete o órgão julgador ao exame de todo contexto probatório para a confirmação da presunção, o que seria irrelevante se estivéssemos diante de uma presunção legal absoluta. Assim, é possível afastar a presunção com a prova contrária, como por exemplo, a prova de esterilidade ou de tipo sanguíneo incompatível com o do suposto filho.


Há, então, como se vê, duas regras que cuidam da recusa da parte a submeter-se a exame médico judicial: a) uma regra geral, prevista no Código Civil, de pouca utilidade prática, pois refere a presunção judicial que decorre da recusa, vista como indício; b) uma regra específica para as ações de investigação de paternidade, que prevê uma presunção legal relativa de paternidade biológica, no caso de haver recusa da parte a submeter-se ao exame de DNA.


Antes da edição da Lei n. 12.004/2009 não havia presunção legal relativa de paternidade para o caso de recusa do suposto pai a submeter-se ao exame. A jurisprudência, porém, via nessa recusa indício para presumir judicialmente a paternidade biológica (seguindo, assim, uma orientação que acabou, como visto, consagrada no Código Civil). A Lei n. 12.004/2009 traz, realmente, uma grande novidade.


Não obstante isso, o STJ, bem antes da edição desta nova lei, publicou o enunciado n. 301 da súmula da sua jurisprudência predominante: “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”. Esse enunciado tem uma série de problemas: a) não está em conformidade com os precedentes do STJ, pois todos cuidam de presunções judiciais, que não podem ser absolutas nem relativas, atributos exclusivos das presunções legais; b) ainda assim, não havia, à época da edição do enunciado da súmula, a mencionada presunção legal relativa, não prevista na legislação civil codificada; tanto não existia essa presunção, que houve necessidade de edição de uma nova lei para determiná-la. O enunciado da súmula do STJ estava, portanto, em desconformidade com os próprios precedentes e com o texto do Código Civil, que cuidava da matéria.


Pois bem.


É preciso distinguir, porém, a ação de investigação de paternidade/maternidade, cujo objetivo é o de, após reconhecer o vínculo de filiação, constituir o vínculo jurídico da paternidade/maternidade, com a ação de investigação de ascendência genética, que é aquela em que o demandante quer investigar apenas se o réu é ou não o seu genitor, sem que se estabeleça entre eles o vínculo da paternidade.


Sobre o assunto, a lição de Paulo Lôbo: “O estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade ou maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao reconhecimento de sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de direito de família e a segunda de direito da personalidade. As normas de regência e os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram. Para garantir a tutela do direito da personalidade não há necessidade de investigar a paternidade. O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para a necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para a prevenção da própria vida. Não há necessidade de se atribuir a paternidade a alguém para se ter o direito da personalidade de conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado por dador anônimo de sêmen, ou do que foi adotado, o do que foi concebido por inseminação artificial heteróloga. (…) Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica para que, identificando seus ascendentes genéticos, possa adotar medidas preventivas para preservação da saúde e, a fortiori, da vida. Esse direito é individual, personalíssimo, não dependendo de ser inserido em relação de família para ser tutelado ou protegido. Uma coisa é vindicar a origem genética, outra a investigação da paternidade. A paternidade deriva do estado de filiação, independentemente da origem (biológica ou não)” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. “Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária”. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, 2003, n. 19, p. 151-153.)


É possível, por exemplo, que alguém, filho adotivo, adulterino, afetivo (paternidade afetiva) ou por inseminação artificial heteróloga, tenha a necessidade de investigar a sua ascendência genética, por problemas relacionados à sua saúde, sem que tenha qualquer pretensão de alterar o seu vínculo jurídico de filiação. Busca-se, tão-só, investigar a ascendência genética. Não se trata de ação declaratória (não é possível ação declaratória sobre o fato “vinculo genético”). É ação de prestação de fazer: submeter-se a exame genético. Nesta demanda, a presunção judicial é totalmente inservível: de nada adianta o magistrado presumir, pela recusa, que o réu é o ascendente genético do autor. Não se aplica, aqui, o art. 232 do CC-2002.


Também não é caso de aplicação do parágrafo único do art. 2º-A da Lei n. 8.560/1992, pois não se trata de ação de investigação de paternidade e, além disso, do mesmo modo uma presunção, mesmo legal, de nada serviria para o demandante, que só terá o seu direito efetivado após comprovação científica da existência ou não do vínculo genético.


Tendo em vista que a realização do exame genético, atualmente, é muito singela (não é mais necessária, sequer, a retirada de sangue, bastando um pouco de saliva para que se possa fazer a perícia), parece que, neste tipo de processo, é indispensável que o exame genético ocorra, podendo o magistrado, para tanto, determinar as medidas executivas que reputar necessárias (§5º do art. 461 do CPC), tal como a expedição de ordem, sob pena de multa diária, para que o réu se submeta à perícia.


Há, de fato, um conflito entre o direito fundamental à saúde e o direito à intimidade/integridade física. A solução deve ser produzida à luz das peculiaridades do caso concreto, aplicando-se o princípio da proporcionalidade. No entanto, há diversos argumentos a favor da prevalência do primeiro sobre segundo: a) a proteção do segundo implica a negação do primeiro, o que vai de encontro ao princípio da salvaguarda do núcleo essencial do direito fundamental; b) a presunção, judicial (art. 232 do CC) ou legal (art. 2º-A, par. ún., Lei n. 8.560/1992) é técnica inútil e inadequada à tutela do direito fundamental à saúde e à vida; c) a singeleza do exame não caracteriza qualquer ofensa à integridade física ou à intimidade do demandado; d) o demandado não sofrerá qualquer prejuízo jurídico com a realização do exame, já que o objetivo não é o de atribuir-lhe o vínculo jurídico paternidade/maternidade; e) a recusa a submeter-se ao exame é, neste caso, abuso de direito, portanto conduta ilícita; f) trata-se de interpretação a favor da efetividade de um direito fundamental que, de outro modo, não poderia ser adequadamente protegido judicialmente.

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