Editorial 56

O art. 620 do CPC consagra o princípio da execução menos onerosa ao executado: “Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”.


É preciso compreender corretamente a norma: “(…) a opção pelo meio menos gravoso pressupõe que os diversos meios considerados sejam igualmente eficazes”[1].  Assim, havendo vários meios executivos aptos à tutela adequada e efetiva do direito de crédito, escolhe-se a via menos onerosa ao executado. O princípio visa impedir a execução desnecessariamente onerosa ao executado; ou seja, a execução abusiva.


O princípio aplica-se em qualquer execução (fundada em título judicial ou extrajudicial), direta ou indireta, qualquer que seja a prestação executada (fazer, não-fazer, dar coisa ou dar quantia).


Trata-se, como se vê, de norma que protege a boa-fé, ao impedir o abuso do direito pelo credor que, sem qualquer vantagem, se valesse de meio executivo mais danoso ao executado. Não parece que o valor que se busca proteger com esse princípio é a dignidade do executado, suficiente e adequadamente protegida pelas regras que limitam os meios executivos, principalmente aquelas que prevêem as impenhorabilidades[2]. Protege-se, isso sim, a ética processual, a lealdade, impedindo o comportamento abusivo do exeqüente. A identificação do valor protegido é muito importante para a ponderação que se precise fazer entre esse princípio e o princípio da efetividade.


Há quem encare o princípio da boa-fé como o corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, ao proibir a execução abusivamente onerosa, o princípio também serviria à tutela da dignidade da pessoa humana, ainda que mediata ou reflexamente.


Não se deve entender essa norma como uma cláusula geral de proteção ao executado, que informaria todas as demais regras de tutela do executado (princípio do favor debitoris) espalhadas pela legislação. O princípio é uma dessas normas de proteção do executado, e não a fonte de todas as outras. O art. 620 do CPC é uma cláusula geral, que serve para impedir o abuso do direito pelo exeqüente: em vez de enumerar situações em que a opção mais gravosa revelar-se-ia injusta, o legislador valeu-se, corretamente, de uma cláusula geral para reputar abusivo qualquer comportamento do credor que pretender valer-se de meio executivo mais oneroso do que outro igualmente idôneo à satisfação do seu crédito. O art. 187 do Código Civil também consagra uma cláusula geral sobre o abuso do direito: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. As normas têm natureza e finalidade semelhantes. 


A aplicação do princípio pode dar-se ex officio: se o credor optar pelo meio mais danoso, pode o juiz determinar que a execução se faça pelo meio menos oneroso. Mas, autorizada a execução por determinado meio, se o executado intervier nos autos e não impugnar a onerosidade abusiva, demonstrando que há outro meio igualmente idôneo, haverá preclusão. O princípio protege o executado; não se pode dispensar a preclusão.


O princípio não autoriza a interpretação de que o valor da execução deve ser reduzido, para que o executado possa cumprir a obrigação, ou de que se deve tirar o direito do credor de escolher a prestação, na obrigação alternativa, muito menos permite que se crie um direito ao parcelamento da dívida, ou direito ao abatimento dos juros e da correção monetária etc. Também não é correta a interpretação que pretende extrair do texto normativo a impossibilidade de penhora de dinheiro, porque é sempre mais oneroso ao executado: a penhora de dinheiro é sempre mais favorável ao exeqüente, não existindo outro meio tão eficaz quanto ele.


O princípio autoriza que se entenda lícito o pedido do executado de substituição do bem penhorado por dinheiro, a qualquer tempo. Não há justifica que possa impedir esse tipo de providência, sempre mais favorável ao exeqüente e que, no caso concreto, pode revelar-se como menos onerosa ao executado.


Trata-se de princípio que frequentemente entrará em rota de colisão com o princípio da efetividade, o que torna ainda mais importante a correta identificação do seu conteúdo dogmático.


[1]   MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Tendências na execução de sentenças e ordens judiciais”, cit., p. 221. Neste sentido, MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil, comentado artigo por artigo. São Paulo: RT, 2008, p. 624.


[2] Em sentido diverso, entendendo que se trata de princípio que é desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana, SHIMURA, Sérgio. “O princípio da menor gravosidade ao executado”. Execução civil e cumprimento da sentença. Gilberto Gomes Bruschi e Sérgio Shimura. São Paulo: Método, 2007, v. 2, p. 539-540.


Fredie Didier Jr.

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