Editorial 49

O importante papel que a jurisprudência exerce na construção do direito positivo parece atualmente indiscutível. A força normativa do precedente judicial aparece em diversos institutos, como a “jurisprudência dominante”(art. 557, CPC), a “súmula impeditiva de recurso”(art. 518, § 1o, CPC) e a súmula vinculante (art. 103-A, CF/88).

A principal característica do “Direito Judicial” é a de que a sua produção se faz por indução. Chamado a resolver casos concretos, o órgão jurisdicional, para criar a norma jurídica individualizada, precisa “criar”, a partir do Direito Legislado, a norma jurídica geral que “fundamenta” a solução do caso concreto. Essa norma jurídica geral que embasa o caso concreto é a ratio decidendi, fundamentação jurídica da decisão, que, se repetida em vários casos, dá ensejo à uniformização da jurisprudência, à edição de enunciado de súmula etc. É a ratio decidendi o precedente judicial que, em alguns casos, deve ser seguido pelo órgão jurisdicional.


Porque produzida a partir do caso concreto, a ratio decidendi não pode ter algumas características que normalmente aparecem no Direito Legislado. Por exemplo: não há razão para que, na formulação da ratio decidendi, se ponham termos de sentido vago. A vagueza na proposição normativa jurisprudencial é um contra-senso: nascida a partir da necessidade de dar concretude aos termos vagos, abertos, gerais e abstratos do Direito Legislado, a ratio decidendi deve ser formulada com termos de acepção precisa, para que não crie dúvidas quanto à sua aplicação em casos futuros.


Um exemplo pode vir a calhar.


O art. 1.102a do CPC permite o ajuizamento de ação monitória a quem disponha de “prova escrita” que não tenha eficácia de título executivo. “Prova escrita” é termo vago. O STJ decidiu que “cheque prescrito” (n. 299 da súmula do STJ) e “contrato de abertura de conta-corrente acompanhado de extrato bancário” (n. 247 da súmula do STJ) são exemplos de prova escrita. Diante de casos concretos, criou “duas normas gerais”, a partir do Direito Legislado, que podem ser aplicadas em diversos outros casos, tanto que viraram enunciado da súmula deste Tribunal Superior. Note que a formulação destes enunciados sumulados não possui qualquer conceito vago, não dando margem a muitas dúvidas quanto à sua incidência.


Infelizmente, essa técnica de elaboração do precedente judicial não foi observada pelo STF, ao editar o n. 11 da sua súmula vinculante: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.


Esse enunciado é tão extenso, e composto de termos de acepção tão vaga (“fundado receio de fuga”, “perigo à integridade física própria ou alheia”, “justificada a excepcionalidade por escrito” etc.), que mais parece texto legislativo. As dificuldades de sua aplicação serão tantas, que certamente deverão surgir outras “súmulas” concretizando o disposto no enunciado n. 11.


A “súmula vinculante”, cuja existência se justifica para dar segurança/previsibilidade à solução de “determinadas situações típicas”, neste caso terá pouca serventia.  Não quero entrar, neste momento, no mérito da questão do uso ou não de algemas, até porque não sou especialista no assunto. A minha preocupação é com a má-técnica do STF na formulação do precedente, que é vinculante. O STF deve lembrar que o “papel normativo” da jurisprudência tem outras características. Situações como essas não poderiam ser “sumuladas”, exatamente porque, em razão das suas peculiaridades concretas, devem sempre ser examinadas a posteriori.


Se é certo que o papel da jurisprudência é cada vez mais importante, também é certo que é preciso um estudo mais rigoroso da teoria do precedente e um aprimoramento na utilização das técnicas desenvolvidas a partir desse conjunto teórico. E uma das técnicas mais importantes é, justamente, a técnica de “redação do preceito normativo jurisprudencial”, a ratio decidendi, a “norma jurídica geral” construída a partir de casos concretos.


Fredie Didier Jr.
Em 23.09.2008.


 

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