Legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ações coletivas.
A Defensoria Pública é instituição essencial à Justiça, com a mesma dignidade e importância que o Ministério Público, a Advocacia Pública e a Advocacia (art. 134 da CF/88). A atuação em favor dos necessitados é determinação constitucional, sendo que a Lei Complementar 80/1994 é a norma regente das Defensorias Públicas da União, do Distrito Federal e dos Territórios, prescrevendo normas gerais para a organização das defensorias dos Estados. Sua função é a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV (acesso formal à justiça).
É importante frisar que a defensoria atua mesmo em favor de quem não é hipossuficiente econômico. Isto por que a Defensoria Pública apresenta funções típicas e atípicas. Função típica é a que pressupõe hipossuficiência econômica, aqui há o necessitado econômico (v.g., defesa em ação civil ou ação civil para investigação de paternidade para pessoas de baixa renda). Função atípica não pressupõe hipossuficiência econômica, seu destinatário não é o necessitado econômico, mas sim o necessitado jurídico, v.g., curador especial no processo civil (CPC art. 9º II) e defensor dativo no processo penal (CPP art. 265).
Até a edição da Lei Federal n. 11.448/2007, o quadro geral, na doutrina e na jurisprudência, não era favorável ao ajuizamento de ações coletivas pela Defensoria Pública, excetuadas duas possibilidades.
Alguns autores entendiam que a Defensoria Pública poderia promover ação coletiva independentemente de legislação que expressamente assim determinasse. Isto ocorreria em dois casos. Por exemplo, quando a associação de moradores procurasse a Defensoria Pública para o ajuizamento de uma ação com a finalidade de coibir um dano ambiental, o art. 5º da Lei 7.347/85 autoriza a impetração pela associação. Nessa situação, o Defensor Público atuaria apenas como representante judicial, quer dizer, a parte autora seria a associação, legalmente constituída há mais de um ano, que por ser hipossuficiente economicamente, daria ensejo à representação pela Defensoria. A petição inicial terá a associação de moradores como representada em juízo pelo Defensor Público subscritor da peça. Essa hipótese já é bastante conhecida.
Existia, contudo, uma outra possibilidade de ajuizamento de ações coletivas, dependendo da previsão expressa de um órgão da defensoria pública para atuar na tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Decorre esta possibilidade do art. 82, III, da Lei nº 8.078/1990 (CDC), que prevê a legitimação de órgãos de defesa do consumidor mesmo que despersonalizados, para a defesa dos direitos e interesses de que trata o Código. O autor desta ação seria um órgão da Defensoria Pública. O Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Estado do RJ foi o precursor destas ações, explicitando na petição inicial que o Núcleo da Defensoria Pública de Defesa do Consumidor move a ação civil coletiva com base no art. 82, III, do CDC. Importante referir que esta premissa se insere no conjunto dos microssistemas da tutela coletiva, podendo ser estendida para todas as demais possibilidades de ajuizamento de ações civis públicas (art. 21 da ACP c/c art. 90 do CDC), portanto, para além do direito do consumidor.
A nova redação do art. 5º da LACP (Lei 7.347/1985), determinada pela Lei n. 11.448/2007, prevê expressamente a Defensoria Pública (art. 5º, II, LACP) entre os legitimados para a propositura da ação civil pública. Atende, assim: a) a evolução da matéria, democratizando a legitimação, conforme posicionamento aqui defendido; b) a tendência jurisprudencial que se anunciava. Além disso, a redação do dispositivo ficou mais clara. É norma louvável, que, além de prestigiar essa importantíssima instituição, estimula a tutela de direitos coletivos, imprescindível para o correto equacionamento da crise que assola do Poder Judiciário.
O legislador, contudo, perdeu a oportunidade de introduzir um mais amplo controle judicial da legitimação adequada, inclusive permitindo a legitimação do indivíduo, nos termos do que vem sendo pugnado pelos Projetos de Código Processual Coletivo. E essa crítica se justifica ainda mais, quando se vê na jurisprudência decisões que interpretam equivocadamente esse novo dispositivo.
Expliquemos.
Para que a Defensoria seja considerada como legitimada adequada para conduzir o processo coletivo, é preciso que seja demonstrado o nexo entre a demanda coletiva e o interesse de uma coletividade composta por pessoas necessitadas, conforme locução tradicional. Assim, por exemplo, não poderia a Defensoria Pública promover ação coletiva para a tutela de direitos de um grupo de consumidores de PlayStation III ou de Mercedes Benz. Não é necessário, porém, que a coletividade seja composta exclusivamente por pessoas necessitadas. Se fosse assim, praticamente estaria excluída a legitimação da Defensoria para a tutela de direitos difusos, que pertencem a uma coletividade de pessoas indeterminadas. Ainda neste sentido, não seria possível a promoção de ação coletiva pela Defensoria quando o interesse protegido fosse comum a todas as pessoas, carentes ou não.
Constatada a legitimação da Defensoria, de acordo com o critério aqui defendido, a decisão poderá beneficiar a todos, indistintamente, necessitados ou não. Qualquer indivíduo poderá valer-se da sentença coletiva para promover a sua liquidação e execução individual. Não se pode confundir o critério para a aferição da capacidade de conduzir o processo coletivo, com a eficácia subjetiva da coisa julgada coletiva. A tutela coletiva é sempre indivisível: tutela-se o direito da coletividade, beneficiando-se, por conseqüência, todos os seus membros. Não se pode confundir a legitimação extraordinária para a tutela de direitos coletivos (pertencente sempre a uma coletividade) com a legitimação extraordinária para a tutela de direitos individuais. Não foi atribuída à Defensoria Pública a legitimação extraordinária para pedir a tutela de direitos individuais. O alerta é importantíssimo, tendo em vista o obiter dictum constante do voto-vista do Min. Teori Zavascki, no REsp n. 912.849-RS, no qual ficou consignado que a decisão coletiva, nestes casos, somente pode beneficiar as que comprovarem ser necessitadas, demonstração essa que ocorrerá na fase de liquidação e execução. Isso é errado. Parte do pressuposto de que o direito coletivo objeto da ação proposta pela Defensoria Pública somente beneficia pessoas necessitadas, o que, como vimos, não ocorre. É claro que somente remanesce legitimação coletiva para a Defensoria Pública promover a execução individual da sentença genérica (direitos individuais homogêneos, art. 98 do CDC), se as vítimas já identificadas forem pessoas necessitadas. Mas qualquer vítima, necessitada ou não, poderá promover individualmente a liquidação e execução da sentença coletiva (art. 97 do CDC). A interpretação sugerida apequena o sistema de tutela dos direitos coletivos, além de ofender claramente o princípio da igualdade.
Finalmente, não há qualquer sentido na alegação da CONAMP de que a Lei n. 11.448/2007 é inconstitucional. A legitimação para a tutela coletiva é conferida para a proteção dos interesses da coletividade, e não para dar mais prestígio a essa ou aquela instituição. A ampliação dos legitimados à tutela coletiva é uma tendência no direito brasileiro, que se iniciou em 1985, com a permissão de que associações pudessem promover ações coletivas, e terminará com a aprovação do projeto de codificação da legislação coletiva, que prevê a legitimação do cidadão. Por outro lado, a tese clássica de Mauro Cappelletti é no sentido da legitimação plúrima como forma mais coerente de fortalecer a efetividade dos novos direitos pela jurisprudência. Esta tese foi aprovada e referendada pelo constituinte no § 1º do art. 129, que trata das funções institucionais do Ministério Público, dispondo expressamente: a legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei. Incide, no caso, o princípio da proibição de retrocesso toda vez que a lei legitime mais de um representante adequado para o ajuizamento da ação coletiva. Esta é a vontade da Constituição, esta é a sua direção. Inconstitucional, ao contrário, é a interpretação que restringe a legitimação conferida de maneira adequada. Vale aqui, para finalizar, o brocardo latino que determina ser na teoria dos direitos fundamentais odiosa restringenda, favorabilia amplianda.
É triste e lamentável, para dizer o mínimo, ler, na petição inicial da ADI n. 3943, que a legitimação dada à Defensoria Pública “afeta diretamente” as atribuições do Ministério Público. O Supremo Tribunal Federal deveria ser provocado para resolver outros tipos de questão. O curioso é que não consta que a mesma CONAMP tenha alegado a não-recepção pela Constituição dos velhos dispositivos da Lei de Ação Civil Pública, que conferem a órgãos despersonalizados e a associações privadas; não estariam eles afetando diretamente as atribuições do Ministério Público?
Em 30 de abril de 2008.
Fredie Didier Jr.
Hermes Zaneti Jr.