Editorial 34

Intervenção de legitimado extraordinário para a defesa de direitos coletivos (lato sensu) como assistente simples em processo individual


No final de fevereiro de 2008, o STF admitiu a intervenção de um sindicato na qualidade de assistente simples (Sindicato da Indústria do Fumo do Estado de São Paulo – SINDIFUMO), em processo que envolve uma indústria de cigarros, em que se discute a constitucionalidade do Decreto-lei n. 1.593/1977 (RE n. 550.769 QO/RJ, rel. Min. Joaquim Barbosa, 28.2.2008, publicada no Informativo do STF n. 496).


É certo que o Sindicato não mantém com o assistido uma relação jurídica conexa com a que se discute. Desta forma, inviável a assistência simples, de acordo com o entendimento tradicional sobre o tema, exposto linhas atrás.


Sucede que o STF entendeu que o interesse jurídico que autoriza a assistência simples, no caso mencionado, configurou-se pela constatação de que o julgamento do STF poderia definir a orientação da jurisprudência em torno do tema (constitucionalidade de meios de coerção indireta para o pagamento do tributo, como a interdição de estabelecimento), que serviria para a solução de um número indefinido de casos.


A relação jurídica conexa à relação discutida, aqui, é uma relação jurídica coletiva, pois envolve a proteção de direitos individuais homogêneos, cuja titularidade pertence à coletividade das vítimas [1] (no caso, as indústrias de tabaco).


O julgamento é bem interessante e merece registro.


Admitindo a força vinculativa do precedente judicial, notadamente quando proveniente do STF, o tribunal reconheceu a necessidade de permitir a ampliação do debate em momento anterior à formação da orientação jurisprudencial. Quebra-se, então, um paradigma do processo individual, para ampliar a concepção de interesse jurídico autorizador da assistência simples: em vez de exigir que o assistente simples tenha com o assistido uma relação jurídica vinculada àquela discutida, admitiu-se a assistência em razão da afirmação de existência de uma relação jurídica de direito coletivo (lato sensu).


Note, porém, que, exatamente por isso, o assistente simples, nesses casos, teria de ser um legitimado extraordinário coletivo: ente que tenha legitimação para a ação coletiva referente aos direitos individuais homogêneos relacionados ao objeto litigioso do processo individual no qual se intervém. Permitir a intervenção de indivíduos titulares de direito individual semelhante ao que se discute em juízo certamente causaria grande tumulto processual.


SÉRGIO CRUZ ARENHART já defendia a necessária ampliação da noção de interesse para intervir como assistente simples, tendo em vista a força vinculativa do precedente judicial. Entende, porém, que deveria admitir-se a intervenção do indivíduo: “É certo que a ampliação desavisada do conceito de ´interesse de intervenção´ pode tornar inviável a solução da lide, por gerar a invasão de terceiros no processo formado. Todavia, no outro vértice da questão, a não admissão desta intervenção ampliada acarretará a violação clara dos direitos de ampla defesa e contraditório de todos estes ´terceiros´ que sofrerão (praticamente de forma imutável) os efeitos de uma decisão judicial, sem jamais ter condições de, efetivamente, opor-se a ela. De fato, não se pode admitir que o primeiro processo instaurado a respeito de certa controvérsia acabe por resultar em decisão que será indistintamente aplicada para todos os demais casos, sem que os titulares destes outros direitos tenham, de fato e de maneira concreta, a possibilidade de apresentar seus argumentos e interferir na decisão judicial. A garantia do contraditório, em sua versão moderna, tem sido vista como não apenas o direito de se manifestar, mas de influir efetivamente na decisão judicial. Não há dúvida de que este direito é violado se a decisão judicial já está pronta, mesmo antes de iniciada a ação em que o interessado pretende apontar os argumentos”. [2]


Como se trata de situação que pode dizer respeito a um sem-número de indivíduos, parece realmente que a técnica mais adequada para resolver o conflito entre o direito ao contraditório destes terceiros interessados na fixação do precedente e o direito à duração razoável do processo é, no caso, permitir apenas a intervenção de legitimado à proteção jurisdicional de direito coletivo (lato sensu).


A decisão reforça, ainda, uma percepção demonstrada no v. 2 deste Curso, no capítulo sobre precedente judicial: o Direito brasileiro vem sendo reestruturado a cada dia para dar aos precedentes judiciais força vinculativa. Ao lado disso, parece inexorável a tendência de adaptar o processo individual ao julgamento de causas repetitivas (arts. 285-A e 543-B, por exemplo).


Perceba também que já se admitia intervenção semelhante nos processos individuais, notadamente naqueles em se discutia incidenter tantum a inconstitucionalidade de um ato normativo. Sucede que, nesses casos, a intervenção se dava na qualidade de amicus curiae: no incidente de decretação de inconstitucionalidade em tribunal (art. 482, §§ 1º, 2º e 3º, do CPC) e no incidente de análise por amostragem da repercussão geral do recurso extraordinário (§ 6º do art. 543-A do CPC, acrescentado pela Lei Federal n. 11.418/2006). O STF simplificou a questão, sem trocadilhos, permitindo a intervenção como assistente simples, instituto já consagrado pela tradição jurídica brasileira e expressamente regulado pelo CPC.


A decisão segue, pois, uma tendência, já divisada pela doutrina, de redefinição do pressuposto do interesse jurídico para a intervenção como assistente simples, consoante demonstrando linhas atrás.



[1] DIDIER Jr., Fredie, ZANETI, Hermes. Curso de direito processual civil. 3ª ed. Salvador: Editora JUS PODIVM, 2008, v. 4, p. 77-84; GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 22-23
 
[2] ARENHART, Sérgio Cruz. “O recurso de terceiro prejudicado e as decisões vinculantes”. In: NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 11, p. 436-437.



Fredie Didier Jr.
Em 31 de março de 2008.

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