Intervenção de legitimado extraordinário para a defesa de direitos coletivos (lato sensu) como assistente simples em processo individual
No final de fevereiro de 2008, o STF admitiu a intervenção de um sindicato na qualidade de assistente simples (Sindicato da Indústria do Fumo do Estado de São Paulo SINDIFUMO), em processo que envolve uma indústria de cigarros, em que se discute a constitucionalidade do Decreto-lei n. 1.593/1977 (RE n. 550.769 QO/RJ, rel. Min. Joaquim Barbosa, 28.2.2008, publicada no Informativo do STF n. 496).
É certo que o Sindicato não mantém com o assistido uma relação jurídica conexa com a que se discute. Desta forma, inviável a assistência simples, de acordo com o entendimento tradicional sobre o tema, exposto linhas atrás.
Sucede que o STF entendeu que o interesse jurídico que autoriza a assistência simples, no caso mencionado, configurou-se pela constatação de que o julgamento do STF poderia definir a orientação da jurisprudência em torno do tema (constitucionalidade de meios de coerção indireta para o pagamento do tributo, como a interdição de estabelecimento), que serviria para a solução de um número indefinido de casos.
A relação jurídica conexa à relação discutida, aqui, é uma relação jurídica coletiva, pois envolve a proteção de direitos individuais homogêneos, cuja titularidade pertence à coletividade das vítimas [1] (no caso, as indústrias de tabaco).
O julgamento é bem interessante e merece registro.
Admitindo a força vinculativa do precedente judicial, notadamente quando proveniente do STF, o tribunal reconheceu a necessidade de permitir a ampliação do debate em momento anterior à formação da orientação jurisprudencial. Quebra-se, então, um paradigma do processo individual, para ampliar a concepção de interesse jurídico autorizador da assistência simples: em vez de exigir que o assistente simples tenha com o assistido uma relação jurídica vinculada àquela discutida, admitiu-se a assistência em razão da afirmação de existência de uma relação jurídica de direito coletivo (lato sensu).
Note, porém, que, exatamente por isso, o assistente simples, nesses casos, teria de ser um legitimado extraordinário coletivo: ente que tenha legitimação para a ação coletiva referente aos direitos individuais homogêneos relacionados ao objeto litigioso do processo individual no qual se intervém. Permitir a intervenção de indivíduos titulares de direito individual semelhante ao que se discute em juízo certamente causaria grande tumulto processual.
SÉRGIO CRUZ ARENHART já defendia a necessária ampliação da noção de interesse para intervir como assistente simples, tendo em vista a força vinculativa do precedente judicial. Entende, porém, que deveria admitir-se a intervenção do indivíduo: “É certo que a ampliação desavisada do conceito de ´interesse de intervenção´ pode tornar inviável a solução da lide, por gerar a invasão de terceiros no processo formado. Todavia, no outro vértice da questão, a não admissão desta intervenção ampliada acarretará a violação clara dos direitos de ampla defesa e contraditório de todos estes ´terceiros´ que sofrerão (praticamente de forma imutável) os efeitos de uma decisão judicial, sem jamais ter condições de, efetivamente, opor-se a ela. De fato, não se pode admitir que o primeiro processo instaurado a respeito de certa controvérsia acabe por resultar em decisão que será indistintamente aplicada para todos os demais casos, sem que os titulares destes outros direitos tenham, de fato e de maneira concreta, a possibilidade de apresentar seus argumentos e interferir na decisão judicial. A garantia do contraditório, em sua versão moderna, tem sido vista como não apenas o direito de se manifestar, mas de influir efetivamente na decisão judicial. Não há dúvida de que este direito é violado se a decisão judicial já está pronta, mesmo antes de iniciada a ação em que o interessado pretende apontar os argumentos”. [2]
Como se trata de situação que pode dizer respeito a um sem-número de indivíduos, parece realmente que a técnica mais adequada para resolver o conflito entre o direito ao contraditório destes terceiros interessados na fixação do precedente e o direito à duração razoável do processo é, no caso, permitir apenas a intervenção de legitimado à proteção jurisdicional de direito coletivo (lato sensu).
A decisão reforça, ainda, uma percepção demonstrada no v. 2 deste Curso, no capítulo sobre precedente judicial: o Direito brasileiro vem sendo reestruturado a cada dia para dar aos precedentes judiciais força vinculativa. Ao lado disso, parece inexorável a tendência de adaptar o processo individual ao julgamento de causas repetitivas (arts. 285-A e 543-B, por exemplo).
Perceba também que já se admitia intervenção semelhante nos processos individuais, notadamente naqueles em se discutia incidenter tantum a inconstitucionalidade de um ato normativo. Sucede que, nesses casos, a intervenção se dava na qualidade de amicus curiae: no incidente de decretação de inconstitucionalidade em tribunal (art. 482, §§ 1º, 2º e 3º, do CPC) e no incidente de análise por amostragem da repercussão geral do recurso extraordinário (§ 6º do art. 543-A do CPC, acrescentado pela Lei Federal n. 11.418/2006). O STF simplificou a questão, sem trocadilhos, permitindo a intervenção como assistente simples, instituto já consagrado pela tradição jurídica brasileira e expressamente regulado pelo CPC.
A decisão segue, pois, uma tendência, já divisada pela doutrina, de redefinição do pressuposto do interesse jurídico para a intervenção como assistente simples, consoante demonstrando linhas atrás.
[1] DIDIER Jr., Fredie, ZANETI, Hermes. Curso de direito processual civil. 3ª ed. Salvador: Editora JUS PODIVM, 2008, v. 4, p. 77-84; GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 22-23
[2] ARENHART, Sérgio Cruz. O recurso de terceiro prejudicado e as decisões vinculantes. In: NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 11, p. 436-437.
Fredie Didier Jr.
Em 31 de março de 2008.