Tribunais administrativos.
Equivalentes jurisdicionais são as formas de solução de conflitos não-jurisdicionais. São chamados de equivalentes exatamente porque, não sendo jurisdição, funcionam como técnica de tutela dos direitos, resolvendo conflitos ou certificando situações jurídicas.
Todas essas formas de solução de conflitos não são definitivas, pois podem ser submetidas ao controle jurisdicional.
Os principais exemplos são: autotutela, autocomposição, mediação e o julgamento de conflito por tribunais administrativos (solução estatal não jurisdicional de conflitos).
A idéia que pretendo apresentar neste editorial é exatamente essa: a solução de questões por tribunais administrativos é um exemplo de equivalente jurisdicional, não referido pela doutrina, porém.
Há diversos tribunais administrativos que julgam conflitos.
O Tribunal Marítimo, por exemplo, é um deles, cujo âmbito de competência abrange, por exemplo, a decisão sobre acidentes de navegação. Note-se que, embora se trate de órgão auxiliar do Poder Judiciário, a Lei Federal n. 2.180/1954 expressamente menciona que esse Tribunal tem jurisdição em todo território nacional: Art. 1º – O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Ministério da Marinha no que se refere ao provimento de pessoal militar e de recursos orçamentários para pessoal e material destinados ao seu funcionamento, tem como atribuições julgar os acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre e as questões relacionadas com tal atividade, especificadas nesta Lei.
Não se trata, porém, de órgão jurisdicional: suas decisões constituem somente elemento de prova em ação judicial, com presunção relativa (iuris tantum) de certeza. Manifesta-se quanto a responsabilidades técnica por acidentes de navegação[1]. É o que está prescrito no art. 18 da Lei Federal n. 2.180/1954: As decisões do Tribunal Marítimo, quanto a matéria técnica referentes aos acidentes e fatos de navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.
Confira o art. 13, I, da Lei Federal n. 2.180/1954: Art. 13 – Compete ao Tribunal Marítimo: I – julgar os acidentes e fatos da navegação: a) definindo-lhes a natureza e determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão; b) indicando os responsáveis e aplicando-lhes as penas estabelecidas nesta lei;(…)
Registre-se, porém, que o Tribunal Marítimo pode funcionar como juízo arbitral, e, portanto, possuir atribuição jurisdicional, se assim for constituído pelos interessados, em litígios patrimoniais conseqüentes a acidentes ou fatos da navegação (art. 16, f, da Lei Federal n. 2.180/1954).
Raciocínio análogo pode ser aplicado às decisões do Tribunal de Contas, que, do mesmo modo, não exerce função jurisdicional pelo Tribunal de Contas, quando, por exemplo, julga as contas prestadas pelos agentes públicos (art. 71, II, CF/88). Sua atividade é eminentemente administrativa e, sobretudo, fiscalizatória.
Trata-se de órgão auxiliar do Poder Legislativo. Prova disso está no art. 71, §3º, da Constituição Federal, que afirma que as decisões do Tribunal de Contas da União de que resulte a imputação de débito ou multa têm eficácia de título executivo extrajudicial. Seguindo um mau vezo comum na linguagem legislativa, a CF/88, ao referir ao Tribunal de Contas da União, determina que ele terá jurisdição em todo o território nacional. Na verdade, exercerá ele as suas funções administrativas em todo território nacional. Justamente por isso, as decisões dos Tribunais de Contas podem ser revistas pelo Poder Judiciário.
Não obstante isso, há processo perante o Tribunal de Contas, de natureza administrativa, pelo qual questões serão decididas por heterocomposição; e, sendo assim, a cláusula do devido processo legal deve ser observada[2].
Situação semelhante ocorre com as agências reguladoras.
As agências reguladoras, entidades autárquicas que cuidam da regulação da atividade econômica, embora entes da administração indireta, possuem, além de outras tipicamente executivas, funções de criar regras jurídicas gerais (poder normativo regulador da atividade econômica) e de compor conflitos de natureza econômica (função reguladora judicante). Interessa, agora, essa última função.
A Agência Nacional de Petróleo tem a competência para fixar o valor e a forma de pagamento da remuneração ao proprietário dos dutos de transporte, caso não haja acordo entre as partes (art. 58, § 1º, Lei Federal n. 9.478/1997). A Agência Nacional de Energia Elétrica tem competência para decidir os conflitos entre concessionárias, permissionárias, autorizadas, produtores independentes e autoprodutores, bem como entre esses agentes e os consumidores (art. 3º da Lei Federal n. 9.427/1996).
As agências reguladoras têm o poder de dirimir conflitos. Sucede que essa heterocomposição, embora formalmente bem parecida com a solução jurisdicional, é apenas um equivalente jurisdicional, na medida em que é possível submeter ao Judiciário o controle das suas decisões, tanto sob o aspecto formal, mas também sob o aspecto substancial (por ofensa ao devido processo legal substancial, por exemplo, ou ao princípio da isonomia) .
Há quem veja no caso uma função reguladora judicante, de natureza jurisdicional ou, ao menos, quase-jurisdicional[4]. A decisão da agência reguladora constitui hipótese típica de ato administrativo[5]. Ao analisar o caráter do CADE de órgão quase-judicial, Fábio Ulhoa Coelho não titubeia: Mas a solenidade com que procura revestir seus julgamentos e o detalhamento legislativo da disciplina de tramitação de seus processos administrativos não são fatores suficientes para alterar a qualidade jurídica dos atos emanados do CADE. A sua natureza é igual à dos atos emanados dos demais órgãos administrativos[6].
O exemplo do CADE também é paradigmático.
Ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica cabe, por exemplo, decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei; III – decidir os processos instaurados pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça; IV – decidir os recursos de ofício do Secretário da SDE; V – ordenar providências que conduzam à cessação de infração à ordem econômica, dentro do prazo que determinar; VI – aprovar os termos do compromisso de cessação de prática e do compromisso de desempenho, bem como determinar à SDE que fiscalize seu cumprimento; VII – apreciar em grau de recurso as medidas preventivas adotadas pela SDE ou pelo Conselheiro-Relator (art. 7º da Lei Federal n. 8.884/1994, incisos II, III, IV, V, VI e VII). Essa função judicante é tão marcante que, no art. 3º da Lei Federal n. 8.884/1994, o legislador chega a reputar o CADE uma autarquia judicante, com jurisdição em todo território nacional.
A decisão de conflito por tribunal administrativo é exemplo de equivalente jurisdicional, pois, embora se trate de solução por heterocomposição dada por um sujeito imparcial diante de uma situação concreta, faltam-lhe os atributos da aptidão para a coisa julgada material e da insuscetibilidade de controle externo, indefectíveis da atividade jurisdicional.
Fredie Didier Jr.
Em 09 de novembro de 2007
[1] NERY Jr., Nelson, NERY, Rosa. Código de Processo Civil comentado. 9ª ed. São Paulo: RT, 2006, p. 279.
[2] I. Tribunal de Contas: competência: contratos administrativos (CF, art. 71, IX e §§ 1º e 2º). O Tribunal de Contas da União – embora não tenha poder para anular ou sustar contratos administrativos – tem competência, conforme o art. 71, IX, para determinar à autoridade administrativa que promova a anulação do contrato e, se for o caso, da licitação de que se originou. II. Tribunal de Contas: processo de representação fundado em invalidade de contrato administrativo: incidência das garantias do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa, que impõem assegurar aos interessados, a começar do particular contratante, a ciência de sua instauração e as intervenções cabíveis. Decisão pelo TCU de um processo de representação, do que resultou injunção à autarquia para anular licitação e o contrato já celebrado e em começo de execução com a licitante vencedora, sem que a essa sequer se desse ciência de sua instauração: nulidade. Os mais elementares corolários da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa são a ciência dada ao interessado da instauração do processo e a oportunidade de se manifestar e produzir ou requerer a produção de provas; de outro lado, se se impõe a garantia do devido processo legal aos procedimentos administrativos comuns, a fortiori, é irrecusável que a ela há de submeter-se o desempenho de todas as funções de controle do Tribunal de Contas, de colorido quase-jurisdicional. A incidência imediata das garantias constitucionais referidas dispensariam previsão legal expressa de audiência dos interessados; de qualquer modo, nada exclui os procedimentos do Tribunal de Contas da aplicação subsidiária da lei geral de processo administrativo federal (L. 9.784/99), que assegura aos administrados, entre outros, o direito a “ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos (art. 3º, II), formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente”. A oportunidade de defesa assegurada ao interessado há de ser prévia à decisão, não lhe suprindo a falta a admissibilidade de recurso, mormente quando o único admissível é o de reexame pelo mesmo plenário do TCU, de que emanou a decisão. (STF, Pleno, MS n. 23550/DF, rel. Min. Marco Aurélio, publicado no DJ de 31-10-2001, p. 6).
[3] Sobre o controle judicial das decisões das agências reguladoras de um modo geral, com profundidade e extensão, GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios, cit., p. 247-346. Especificamente em relação às decisões do CADE, BRUNA, Sérgio Varela. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: RT, 1997, p. 151; FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. Introdução ao direito da concorrência. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 25-26; MENDES, Conrado Hübner. Reforma do Estado e Agências Reguladoras: Estabelecendo Parâmetros de Discussão. Direito Administrativo Econômico. Carlos Ari Sundfeld (coord.) São Paulo: Malheiros, 2000, p. 130-131.
[4] Sobre a polêmica, GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 125-127. Há quem considere essa atividade como jurisdicional, mas reconheça a possibilidade de controle de suas decisões perante o Poder Judiciário (PAULA, Daniel Giotti de. Aplicação do CPC e dos princípios processuais nos processos junto ao CADE. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: Dialética, 2007, n. 55, p. 33).
[5] GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios, cit., p. 143.
[6] COELHO, Fábio Ulhoa. Direito antitruste brasileiro Comentários à Lei 8.884/94. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 12.