Reforma da execução de sentença. Art. 475-N, I, CPC. Sentença constitutiva como título executivo.
A doutrina costuma estabelecer uma relação muito próxima entre a sentença condenatória (em sentido amplo: aqui compreendida como sentença que reconhece a exigibilidade de um direito a uma prestação) e a atividade executiva. A lição, de tão conhecida, carece de indicação de referências doutrinárias.
O rol dos títulos executivos judiciais no direito positivo brasileiro sofreu considerável ampliação com a mudança da redação do inciso I do art. 475-N do CPC (antes inciso I do art. 584, ora revogado), que confere eficácia executiva à sentença que reconhecer (certificar) a existência de uma obrigação (um direito a uma prestação). Há quem admita, por isso, e com razão, a eficácia executiva também de sentenças meramente declaratórias, desde que reconheçam a existência de um direito a uma prestação.
A questão examinada está dentro deste contexto: é possível reconhecer eficácia executiva a uma sentença constitutiva? Para responder à questão, é preciso continuar a estabelecer as premissas do raciocínio.
O conteúdo de uma sentença constitutiva consiste no reconhecimento e na efetivação de um direito potestativo.
O direito potestativo não se relaciona a qualquer prestação do sujeito passivo, razão pela qual não pode e nem precisa ser “executado”, no sentido de serem praticados atos materiais consistentes na efetivação de uma prestação devida (conduta humana devida), de resto inexistente neste vínculo jurídico. É por isso que se reputa comum a afirmação de que “sentença constitutiva não é título executivo”. O que, na verdade, dispensa “execução” é o direito potestativo reconhecido na sentença constitutiva, e não ela mesma.
O efeito principal de uma sentença constitutiva (aquele que decorre diretamente do seu conteúdo) é, então, a situação jurídica nova, a transformação ou a extinção de uma situação jurídica já existente.
A efetivação de um direito potestativo pode gerar um direito a uma prestação. A situação jurídica criada após a efetivação de um direito potestativo pode ser exatamente um direito a uma prestação (de fazer, não-fazer ou dar). Perceba: a efetivação de um direito potestativo pode fazer nascer um direito a uma prestação, para cuja efetivação (deste último), aí sim é indispensável a prática de atos materiais de realização da prestação devida.
A sentença constitutiva pode ter por efeito anexo um direito a uma prestação e, assim, servir como título executivo para efetivar a prestação conteúdo deste direito que acabou de surgir.
O efeito anexo de uma sentença é efeito jurídico que decorre da sentença encarada como um fato jurídico; mais precisamente, é efeito que decorre da produção de efeitos principais por uma sentença, encarada essa eficácia principal como o fato gerador da eficácia anexa. Arremata PONTES DE MIRANDA: “O efeito anexo é efeito da sentença e pressuposto do direito, pretensão, ação ou poder, que se crie com ele. Cumpre não se ter o efeito mesmo como tal” (MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, t. 5, p. 51 (o grifo em “pressuposto” não existe no original).
Direitos a uma prestação, que surjam da efetivação de um direito potestativo, são, portanto, reconhecidos por uma sentença constitutiva: ao certificar e efetivar um direito potestativo, o órgão jurisdicional certifica, também, por tabela, o direito a uma prestação que daquele é conseqüência.
Apresentadas as premissas, eis alguns exemplos que fundamentam a conclusão já apresentada (sentença constitutiva pode servir como título executivo).
a) Conforme apontado, a situação jurídica passiva correlata ao direito potestativo é o estado de sujeição; não há dever correlato ao direito potestativo. O sujeito passivo nada pode fazer contra o exercício do direito potestativo, uma vez preenchidos os seus pressupostos: os efeitos “produzir-se-ão sempre, queira ou não o sujeitado, logo que o direito potestativo exista e seja exercitado em devida forma. A sujeição, portanto, ao contrário do dever jurídico, não pode ser infringida“. No entanto, poderá o sujeito passivo “infringir depois os efeitos produzidos, mas então estaremos já no domínio dos direitos subjectivos” (ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Livraria Almedina, 1997, v. 1, p. 17). A lição de MANUEL ANDRADE é utilíssima e serve como regra geral: uma sentença constitutiva, ao efetivar um direito potestativo, cria um preceito que deve ser obedecido pelo sujeito passivo, consistente no dever de obedecer à nova situação jurídica criada, não criando embaraços à sua concretização. Surge, pois, um dever de prestar (correlato a um direito a uma prestação negativa) cujo descumprimento pode dar ensejo à instauração da atividade executiva, que, rigorosamente, buscará efetivar o comando judicial contido na sentença constitutiva.
b) A decisão que rescinde (art. 485 do CPC) uma sentença que já fora executada (decisão inegavelmente constitutiva) gera, por efeito anexo, o direito do executado à indenização pelo exeqüente dos prejuízos que lhe foram causados em razão da execução malsinada (art. 574 do CPC) . Essa decisão tem aptidão para transformar-se em título executivo, pois torna certa a obrigação de indenizar, que, não obstante, ainda é ilíquida, se impondo a apuração da extensão do prejuízo em liquidação.
c) A decisão que resolve um compromisso de compra e venda, em razão do inadimplemento, tem por efeito anexo o surgimento do dever de devolver a coisa prometida à venda.
A jurisprudência maciça do Superior Tribunal de Justiça tem entendido que o pedido de devolução da coisa, decorrente da resolução do compromisso, não precisa ser formulado e nem é relevante para a determinação da competência do foro da situação do imóvel (art. 95 do CPC), exatamente porque se trata de um efeito anexo.
Assim, resolvido o negócio e não devolvida a coisa, pode o autor-vencedor pedir a instauração de atividade executiva para a entrega do bem, já que esse direito a uma prestação (devolução da coisa) foi certificado pela sentença constitutiva, não obstante como efeito anexo, em razão da efetivação do direito potestativo de resolução do contrato. Não faria muito sentido, de fato, a interpretação que impusesse ao autor o ônus de propor outra ação de conhecimento reipersecutória, se a existência deste direito não pode ser mais discutida. Nada há a ser certificado. E, convenhamos, não é isso o que acontece no foro: a parte requer, incontinenti, a expedição do mandado para a devolução da coisa.
d) A decisão que extingue uma relação jurídica locatícia, em razão, por exemplo, de uma denúncia vazia do locador, é constitutiva (extingue vínculo contratual), mas gera, indiscutivelmente, o direito de o autor-locador rever a coisa anteriormente locada. E é o que acontece, é cediço, nas ações de despejo, comumente designadas como executivas lato sensu, mas que, de fato, são constitutivas que dão ensejo a futura atividade executiva em razão do surgimento do direito à devolução da coisa locada.
e) A decisão que extingue a execução provisória, em razão da reforma da sentença em que se baseara, é preponderantemente constitutiva (extingue-se o procedimento executivo, desfazendo, por tabela, os atos executivos já praticados), mas, todos sabem, torna certa a obrigação de o exeqüente indenizar o executado pelos prejuízos efetivamente sofridos (art. 475-O, I e II, CPC).
f) A decisão que anula um auto de infração (inegavelmente constitutiva negativa) tem por efeito anexo o dever de a Administração Tributária não proceder à inscrição do respectivo tributo na dívida ativa. Se isso acontecer, haverá descumprimento de uma prestação negativa, que dará ensejo à instauração, com base na referida sentença, de atividade executiva. Seria possível defender a tese de que contra este ato administrativo caberia mandado de segurança. Sucede que não há necessidade nem utilidade no ajuizamento de uma ação de conhecimento para certificar um direito já existente e indiscutível pela coisa julgada material. O comportamento administrativo dá ensejo à execução, e não a nova atividade de conhecimento.
g) A anulação de um ato jurídico provém de uma sentença indiscutivelmente constitutiva. O art. 182 do Código Civil determina que “anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”. É clara a disposição legislativa: a efetivação do direito potestativo de anular o ato jurídico faz surgir direitos a uma prestação como efeito anexo, ou para restituir as partes ao estado anterior (devolução da coisa objeto do contrato, por exemplo) ou para serem indenizadas (indenização cujo montante deverá ser apurado em liquidação).
h) A sentença de revisão de aluguel é constitutiva, pois transforma um dos elementos de uma relação jurídica já existente. Não parece haver dúvida de que o locador possa executá-la se o locatário deixar de pagar o valor do aluguel reajustado (art. 69, § 2º, Lei Federal n. 8.245/1991) – e a possibilidade de execução abrange, inclusive, o aluguel provisório (tutela antecipada na ação revisional), previsto no art. 68, II, da Lei Federal 8.245/1991.
i) Esse raciocínio explica, ainda, a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela (art. 273 do CPC) em ações constitutivas . Antecipa-se a eficácia anexa da sentença constitutiva. A decisão que antecipa a tutela, em tais situações, deverá ser executada para realizar uma prestação devida, decorrente de um direito a uma prestação que é (será) eficácia anexa de futura e provável sentença constitutiva.
Fredie Didier Jr.
16 de abril de 2007.