Editorial 187

Estatuto da Pessoa com Deficiência, Código de Processo Civil de 2015 e Código Civil: uma primeira reflexão.

O CPC-2015 alterou profundamente o procedimento da interdição. Em razão disso, promoveu expressamente a revogação de artigos do Código Civil. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, no entanto, alterou artigos que o CPC havia revogado. É preciso compatibilizar isso, portanto.

Os arts. 1.768 a 1.773 do Código Civil disciplinavam aspectos do processo de interdição.

O Código de Processo Civil passou a consolidar todo o regramento sobre o assunto, exatamente por ser o local mais apropriado; o regramento da interdição, inclusive, sofreu inúmeras mudanças (arts. 747-758 do CPC). Por isso, esses artigos do Código Civil foram revogados.

Sucede que, após a publicação do CPC-2015, foi editada a Lei n. 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Esta lei é resultado de um projeto de lei que tramitou concomitantemente ao projeto que resultou no CPC-2015. O CPC-2015 foi muito influenciado pelas discussões e propostas que acabaram culminando no Estatuto da Pessoa com Deficiência. Alguns exemplos: direito do portador de deficiência auditiva a comunicar-se, em audiências, por meio da Língua Brasileira de Sinais (art. 162, III, CPC-2015); consagração da atipicidade da negociação processual (art. 190, CPC); direito das pessoas com deficiência à acessibilidade aos meios eletrônicos de comunicação processual (art. 199, CPC-2015); humanização do processo de interdição (arts. 751, §3º, 755, II); tramitação prioritária de processos de pessoas idosas ou portadoras de doenças graves (art. 1.048, CPC).

Sucede que a Lei n. 13.146/2015 alterou a redação de artigos do Código Civil relacionados à interdição que o CPC-2015 havia revogado – sem ter revogado a revogação promovida pelo inciso II do art. 1.072 do CPC. Nesse ponto, a desatenção legislativa é evidente.

É preciso, então, conciliar as leis no plano intertemporal. A tarefa não é simples. Para tanto, são dois os postulados interpretativos que serão utilizados: a) as leis estão em sintonia de propósitos; b) elas devem ser interpretadas de modo a dar coerência ao sistema.

Quatro são os dispositivos afetados: arts. 1.768, 1.769, 1.771 e 1.772 do Código Civil; todos eles revogados pelo cpc-2015 e alterados pela Lei n. 13.146/2015.

O art. 1.768 do Código Civil foi revogado, pois o regramento da legitimidade para a propositura da ação interdição passou a estar no art. 747 do CPC. Agora, a Lei n. 13.146/2015, ignorando a revogação do dispositivo pelo CPC, acrescenta-lhe um inciso (art. 1.768, IV, Código Civil), para permitir a promoção da interdição pelo próprio interditando – legitimando a autointerdição, portanto. Não há essa previsão no art. 747, CPC. O artigo alterado será revogado a partir de 18 de março de 2016. O que, então, fazer? Parece que a melhor solução é considerar que a revogação promovida pelo CPC levou em consideração a redação da época, em que não aparecia a possibilidade de autointerdição. A Lei n. 13.146/2015 claramente quis instituir essa nova hipótese de legitimação, até então não prevista no ordenamento – e, por isso, não pode ser considerada como “revogada” pelo CPC. O CPC não poderia revogar o que não estava previsto. Assim, será preciso considerar que há um novo inciso ao rol do art. 747 do CPC, que permite a promoção da interdição pela “própria pessoa”.

 

CPC-2015 Código Civil (versão original) Código Civil (após a Lei n. 13.146/2015)
Art. 747.  A interdição pode ser promovida:

I – pelo cônjuge ou companheiro;
II – pelos parentes ou tutores;
III – pelo representante da entidade em que se encontra abrigado o interditando;
IV – pelo Ministério Público.

Parágrafo único.  A legitimidade deverá ser comprovada por documentação que acompanhe a petição inicial.

 

Art. 1.768. A interdição deve ser promovida:
I – pelos pais ou tutores;
II – pelo cônjuge, ou por qualquer parente;
III – pelo Ministério Público.
“Art. 1.768.  O processo que define os termos da curatela deve ser promovido:

…………………………………………………………………………………

IV – pela própria pessoa.”

 

 

O art. 1.769 do Código Civil foi revogado, pois o regramento da legitimidade do Ministério Público para a propositura da ação interdição passou a estar no art. 748 do CPC. O CPC, no particular, havia inovado, ao exigir que o Ministério Público somente pudesse propor a ação de interdição em caso de doença mental grave (exigência que consta do caput do art. 748 do CPC) – pelo Código Civil, o caso de doença mental grave era um dos casos em que o Ministério Público poderia promover a ação, tanto que aparecia em um dos incisos do art. 1.769 do Código Civil. A Lei n. 13.146/2015, nesse ponto, não percebeu a mudança promovida pelo CPC-2015 e manteve a estrutura do Código Civil, alterando apenas a redação do inciso I do art. 1.769: em vez de “doença mental grave”, “deficiência mental ou intelectual”. A diferença é evidente e, nesse caso, parece mais adequado considerar que houve revogação tácita do CPC-2015, no ponto, pela Lei n. 13.146/2015. A legitimidade do Ministério Público para a ação de interdição deve observar o comando do Estatuto da Pessoa com Deficiência.

 

CPC-2015 Código Civil (versão original) Código Civil (após a Lei n. 13.146/2015)
Art. 748.  O Ministério Público só promoverá interdição em caso de doença mental grave:

I – se as pessoas designadas nos incisos I, II e III do art. 747 não existirem ou não promoverem a interdição;
II – se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas nos incisos I e II do art. 747.

Art. 1.769. O Ministério Público só promoverá interdição:
I – em caso de doença mental grave;

II – se não existir ou não promover a interdição alguma das pessoas designadas nos incisos I e II do artigo antecedente;

III – se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas no inciso antecedente.

 

“Art. 1.769.  O Ministério Público somente promoverá o processo que define os termos da curatela:

I – nos casos de deficiência mental ou intelectual;

………………………………………………………………………………..

III – se, existindo, forem menores ou incapazes as pessoas mencionadas no inciso II.”

 

O art. 1.771 do Código Civil foi revogado, pois a disciplina da entrevista judicial do interditando, antes da contestação, passou a estar no art. 751 do CPC. A Lei n. 13.146/2015, alterou, no entanto, a redação de dispositivo, que havia sido revogado pelo CPC. Nesse ponto, a harmonia do art. 751 do CPC e da nova redação do art. 1.771 do Código Civil é mais clara: ambos falam em “entrevista do interditando”, em vez de interrogatório ou exame, como se referiam o CPC-1973 e o Código Civil, respectivamente. A diferença é que o CPC-2015 havia “permitido” que o juiz estivesse acompanhado por especialista nessa entrevista, enquanto a Lei n. 13.146/2015 impõe esse acompanhamento, e por equipe multidisciplinar (não um especialista, mas uma equipe). A “imposição” já estava no Código Civil, e havia claramente sido revogada pelo CPC-2015 (art. 751, §2º, CPC); agora, voltou pela Lei n. 13.146/2015, que me parece, também aqui, revogou tacitamente a revogação do CPC-2015. Já em relação à exigência de o acompanhamento ser por equipe multidisciplinar, isso, obviamente, somente pode ser exigido se for o caso; além de encarecer demais o processo, o caso pode dispensar o conhecimento de vários ramos do conhecimento. O CPC-2015 já havia previsto a possibilidade de equipe multidisciplinar na perícia da interdição (art. 753, §1º, CPC), regra que obviamente se estendia ao momento da entrevista.

 

CPC-2015 Código Civil (versão original) Código Civil (após a Lei n. 13.146/2015)
Art. 751.  O interditando será citado para, em dia designado, comparecer perante o juiz, que o entrevistará minuciosamente acerca de sua vida, negócios, bens, vontades, preferências e laços familiares e afetivos e sobre o que mais lhe parecer necessário para convencimento quanto à sua capacidade para praticar atos da vida civil, devendo ser reduzidas a termo as perguntas e respostas.

§ 1o Não podendo o interditando deslocar-se, o juiz o ouvirá no local onde estiver.

§ 2o A entrevista poderá ser acompanhada por especialista.

§ 3o Durante a entrevista, é assegurado o emprego de recursos tecnológicos capazes de permitir ou de auxiliar o interditando a expressar suas vontades e preferências e a responder às perguntas formuladas.

§ 4o A critério do juiz, poderá ser requisitada a oitiva de parentes e de pessoas próximas.

 

Art. 1.771. Antes de pronunciar-se acerca da interdição, o juiz, assistido por especialistas, examinará pessoalmente o argüido de incapacidade. “Art. 1.771.  Antes de se pronunciar acerca dos termos da curatela, o juiz, que deverá ser assistido por equipe multidisciplinar, entrevistará pessoalmente o interditando.”

 

O art. 1.772 do Código Civil foi revogado, pois o regramento da gradação da interdição e da escolha do curador passou a estar no art. 755 do CPC. Nesse ponto, a Lei n. 13.146/2015, ao alterar a redação do art. 1.772, Código Civil, está em total harmonia com o CPC-2015: é preciso modular a interdição, respeitar as preferências do interditando e promover a escolha de curador que mais bem possa atender aos interesses do interdito.

 

CPC-2015 Código Civil (versão original) Código Civil (após a Lei n. 13.146/2015)
Art. 755.  Na sentença que decretar a interdição, o juiz:

I – nomeará curador, que poderá ser o requerente da interdição, e fixará os limites da curatela, segundo o estado e o desenvolvimento mental do interdito;

II – considerará as características pessoais do interdito, observando suas potencialidades, habilidades, vontades e preferências.

§ 1o A curatela deve ser atribuída a quem melhor possa atender aos interesses do curatelado.

§ 2o Havendo, ao tempo da interdição, pessoa incapaz sob a guarda e a responsabilidade do interdito, o juiz atribuirá a curatela a quem melhor puder atender aos interesses do interdito e do incapaz.

§ 3o  A sentença de interdição será inscrita no registro de pessoas naturais e imediatamente publicada na rede mundial de computadores, no sítio do tribunal a que estiver vinculado o juízo e na plataforma de editais do Conselho Nacional de Justiça, onde permanecerá por 6 (seis) meses, na imprensa local, 1 (uma) vez, e no órgão oficial, por 3 (três) vezes, com intervalo de 10 (dez) dias, constando do edital os nomes do interdito e do curador, a causa da interdição, os limites da curatela e, não sendo total a interdição, os atos que o interdito poderá praticar autonomamente.

 

Art. 1.772. Pronunciada a interdição das pessoas a que se referem os incisos III e IV do art. 1.767, o juiz assinará, segundo o estado ou o desenvolvimento mental do interdito, os limites da curatela, que poderão circunscrever-se às restrições constantes do art. 1.782.

 

“Art. 1.772.  O juiz determinará, segundo as potencialidades da pessoa, os limites da curatela, circunscritos às restrições constantes do art. 1.782, e indicará curador.

Parágrafo único.  Para a escolha do curador, o juiz levará em conta a vontade e as preferências do interditando, a ausência de conflito de interesses e de influência indevida, a proporcionalidade e a adequação às circunstâncias da pessoa.”

Em 06.08.2015.

Fredie Didier Jr.

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