Notas para uma teoria da interpretação da decisão judicial.
A decisão judicial é um exemplo de enunciado normativo. De sua interpretação podem ser extraídas normas jurídicas.
No mínimo, extrai-se da decisão uma norma jurídica individualizada, normalmente aferível da parte dispositiva da decisão, que regula o caso submetido à apreciação jurisdicional – no mínimo, pois o dispositivo da decisão pode ter conteúdo complexo, com vários capítulos. Assim, dele seria possível extrair diversas normas jurídicas individualizadas, tantas quantas seja o número de capítulos. Da sua fundamentação extrai-se a norma jurídica geral, construída à luz do caso concreto, que tem aptidão para servir de modelo para a solução de casos semelhantes àquele.
A decisão há de ser interpretada, portanto: quer para definir-se qual é a regra jurídica que regulará o caso, quer para dela extrair-se a norma jurídica geral que funcionará como precedente.
A interpretação da decisão é tema importantíssimo. A definição dos limites da coisa julgada dependerá, necessariamente, da interpretação da decisão. Não é por acaso que se costuma, em execução de sentença, alegar ofensa à coisa julgada, baseando-se exatamente em questões relacionadas à interpretação da sentença.
O tema merece atenção e destaque que não costuma ter. Não é o caso de revisar toda a teoria da interpretação jurídica, o que seria impossível e inapropriado. O objetivo deste editorial é apresentar as noções iniciais para a interpretação de uma decisão judicial.
É possível traçar um esboço para uma teoria da interpretação da decisão judicial. Seguem as premissas de que se deve partir para tanto.
a) Dispositivo e fundamentação devem ser interpretados conjuntamente. A compreensão do dispositivo depende do exame da fundamentação, que também somente será devidamente interpretada a partir do que foi enunciado no dispositivo. A decisão há de ser interpretada, enfim, como um todo. Trata-se de aplicar a técnica da intepretação sistemática à compreensão da decisão judicial.
b) As postulações de ambas as partes são dados que sempre devem ser levados em consideração para a intepretação da decisão. A definição precisa da norma jurídica extraída da sentença não prescinde do exame do que foi postulado pelas partes, limite que é do exercício da função jurisdicional, como define a regra da congruência objetiva, já examinada (arts. 128 e 460, CPC).
O comportamento das partes também passa a ser um dado relevante para a compreensão do que foi demandado e, por consequência, do que foi decidido. As manifestações da parte ao longo de todo o processo, assim como comportamentos adotados fora do processo, não podem ser ignorados na interpretação da decisão.
Imagine que a parte se tenha manifestado, durante o processo, sempre em uma direção, sobretudo em relação à interpretação do seu pedido. Esse comportamento torna-se um elemento imprescindível na interpretação da decisão.
Pense, ainda, na hipótese de a parte, ao formalizar negócios jurídicos extraprocessuais, ter adotado um sentido às postulações que fez em juízo. Por exemplo, em um negócio, a parte refere-se expressamente ao conteúdo de um processo judicial em curso. Esse comportamento passa a ser também relevantíssimo para a interpretação da sua postulação e, obviamente, da decisão a respeito dela.
A identificação da ratio decidendi – elemento normativo do precedente judicial– depende, também, necessariamente do exame do caso de que se originou: exame do problema e dos contextos fático e jurídico submetidos ao órgão jurisdicional. Esse é, fundamentalmente, o propósito do distinguishing (método de comparação entre o precedente e o caso concreto).
O Superior Tribunal de Justiça se tem utilizado destes dois critérios para interpretar a decisão judicial. A propósito: “Havendo dúvidas na interpretação do dispositivo da sentença, deve-se preferir a que seja mais conforme à fundamentação e aos limites da lide, em conformidade com o pedido formulado no processo. Não há sentido em se interpretar que foi proferida sentença ultra ou extra petita, se é possível, sem desvirtuar seu conteúdo, interpretá-la em conformidade com os limites do pedido inicial”. (STJ, REsp n. 818.614/MA, Rel. Ministra Nancy Andrighi, publicado no DJ de 20.11.2006).
c) Aplicam-se à interpretação da decisão judicial as normas de interpretação dos atos jurídicos; ou seja, as normas que disciplinam a interpretação das declarações de vontade.
O art. 112 do Código Civil, por exemplo, enuncia que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”. Trata-se de dispositivo plenamente aplicável à interpretação da decisão judicial.
Embora a interpretação literal seja o ponto de partida – uma interpretação que contrarie frontalmente o texto dificilmente será considerada como legítima –, ela não é a única técnica possível de interpretação. A interpretação teleológica também é importante. E é disso que trata o art. 112 do Código Civil.
Vejamos um exemplo. Imagine-se uma decisão em que, na fundamentação, há expressa manifestação sobre a tese jurídica a ser aplicada e o âmbito de incidência da norma jurídica individualizada. O julgador diz que acolhe apenas um dos pedidos formulados. No dispositivo, porém, afirma que julga procedente a ação, “nos termos do pedido formulado pelo demandante”. Surge a dúvida: o juiz acolheu todos os pedidos (como leva a crer o dispositivo) ou apenas um deles (como aponta a fundamentação)? No caso, a interpretação correta é a que extrai deste texto aquilo que parece ser a vontade do órgão julgador, revelada no enunciado mais completo e analítico da fundamentação: acolheu-se apenas um dos pedidos formulados, e não todos eles.
O art. 113 do Código Civil enuncia, ainda, que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. A aplicação do dispositivo à interpretação da decisão judicial é clara, até mesmo como reforço à incidência do princípio da boa-fé processual.
Os signos (palavras, números e outros símbolos) utilizados pelo órgão julgador na decisão devem ser interpretados de acordo com a boa-fé e com os usos do lugar de sua celebração. Se uma determinada palavra vinha sendo utilizada, ao longo de todo o processo, em uma determinada acepção, a interpretação da decisão em que esta palavra aparece não pode, por exemplo, dar a ela um sentido diverso. Se, em outro exemplo, em determinada comunidade, uma expressão consagrou-se, pelo uso, em um sentido, não se pode, ao interpretá-la posteriormente, dar a ela um sentido incompatível com aquele que a ela sempre se atribuiu.
Embora sem fundamentar-se no princípio da boa-fé, foi assim que a 4ª T. do STJ encaminhou-se no julgamento do AgRg no AREsp n. 94.186/PR, rel. Maria Isabel Gallotti, em 07.08.2012, acórdão publicado no DJe de 14.08.2012: “Não há que se falar em ofensa à coisa julgada quando o julgador, diante da imprecisão do comando sentencial, confere nova interpretação da sentença exequenda, de forma a viabilizar a condenação imposta”.
d) Os embargos de declaração podem funcionar como um instrumento para orientar a interpretação, já que eles se propõem a esclarecer os termos da decisão (art. 535, CPC).
e) Não é apenas o prolator da decisão que pode interpretá-la: o juízo da liquidação ou da execução – que nem sempre será o juízo da sentença – e o juízo que está diante do precedente judicial, por exemplo, também deverão interpretá-la.
Esse é um esboço. Muito ainda há de ser construído.
Em 14.12.2012.
Fredie Didier Jr.
Notas para uma teoria da interpretação da decisão judicial.
A decisão judicial é um exemplo de enunciado normativo. De sua interpretação podem ser extraídas normas jurídicas.
No mínimo, extrai-se da decisão uma norma jurídica individualizada, normalmente aferível da parte dispositiva da decisão, que regula o caso submetido à apreciação jurisdicional – no mínimo, pois o dispositivo da decisão pode ter conteúdo complexo, com vários capítulos. Assim, dele seria possível extrair diversas normas jurídicas individualizadas, tantas quantas seja o número de capítulos. Da sua fundamentação extrai-se a norma jurídica geral, construída à luz do caso concreto, que tem aptidão para servir de modelo para a solução de casos semelhantes àquele.
A decisão há de ser interpretada, portanto: quer para definir-se qual é a regra jurídica que regulará o caso, quer para dela extrair-se a norma jurídica geral que funcionará como precedente.
A interpretação da decisão é tema importantíssimo. A definição dos limites da coisa julgada dependerá, necessariamente, da interpretação da decisão. Não é por acaso que se costuma, em execução de sentença, alegar ofensa à coisa julgada, baseando-se exatamente em questões relacionadas à interpretação da sentença.
O tema merece atenção e destaque que não costuma ter. Não é o caso de revisar toda a teoria da interpretação jurídica, o que seria impossível e inapropriado. O objetivo deste editorial é apresentar as noções iniciais para a interpretação de uma decisão judicial.
É possível traçar um esboço para uma teoria da interpretação da decisão judicial. Seguem as premissas de que se deve partir para tanto.
a) Dispositivo e fundamentação devem ser interpretados conjuntamente. A compreensão do dispositivo depende do exame da fundamentação, que também somente será devidamente interpretada a partir do que foi enunciado no dispositivo. A decisão há de ser interpretada, enfim, como um todo. Trata-se de aplicar a técnica da intepretação sistemática à compreensão da decisão judicial.
b) As postulações de ambas as partes são dados que sempre devem ser levados em consideração para a intepretação da decisão. A definição precisa da norma jurídica extraída da sentença não prescinde do exame do que foi postulado pelas partes, limite que é do exercício da função jurisdicional, como define a regra da congruência objetiva, já examinada (arts. 128 e 460, CPC).
O comportamento das partes também passa a ser um dado relevante para a compreensão do que foi demandado e, por consequência, do que foi decidido. As manifestações da parte ao longo de todo o processo, assim como comportamentos adotados fora do processo, não podem ser ignorados na interpretação da decisão.
Imagine que a parte se tenha manifestado, durante o processo, sempre em uma direção, sobretudo em relação à interpretação do seu pedido. Esse comportamento torna-se um elemento imprescindível na interpretação da decisão.
Pense, ainda, na hipótese de a parte, ao formalizar negócios jurídicos extraprocessuais, ter adotado um sentido às postulações que fez em juízo. Por exemplo, em um negócio, a parte refere-se expressamente ao conteúdo de um processo judicial em curso. Esse comportamento passa a ser também relevantíssimo para a interpretação da sua postulação e, obviamente, da decisão a respeito dela.
A identificação da ratio decidendi – elemento normativo do precedente judicial– depende, também, necessariamente do exame do caso de que se originou: exame do problema e dos contextos fático e jurídico submetidos ao órgão jurisdicional. Esse é, fundamentalmente, o propósito do distinguishing (método de comparação entre o precedente e o caso concreto).
O Superior Tribunal de Justiça se tem utilizado destes dois critérios para interpretar a decisão judicial. A propósito: “Havendo dúvidas na interpretação do dispositivo da sentença, deve-se preferir a que seja mais conforme à fundamentação e aos limites da lide, em conformidade com o pedido formulado no processo. Não há sentido em se interpretar que foi proferida sentença ultra ou extra petita, se é possível, sem desvirtuar seu conteúdo, interpretá-la em conformidade com os limites do pedido inicial”. (STJ, REsp n. 818.614/MA, Rel. Ministra Nancy Andrighi, publicado no DJ de 20.11.2006).
c) Aplicam-se à interpretação da decisão judicial as normas de interpretação dos atos jurídicos; ou seja, as normas que disciplinam a interpretação das declarações de vontade.
O art. 112 do Código Civil, por exemplo, enuncia que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”. Trata-se de dispositivo plenamente aplicável à interpretação da decisão judicial.
Embora a interpretação literal seja o ponto de partida – uma interpretação que contrarie frontalmente o texto dificilmente será considerada como legítima –, ela não é a única técnica possível de interpretação. A interpretação teleológica também é importante. E é disso que trata o art. 112 do Código Civil.
Vejamos um exemplo. Imagine-se uma decisão em que, na fundamentação, há expressa manifestação sobre a tese jurídica a ser aplicada e o âmbito de incidência da norma jurídica individualizada. O julgador diz que acolhe apenas um dos pedidos formulados. No dispositivo, porém, afirma que julga procedente a ação, “nos termos do pedido formulado pelo demandante”. Surge a dúvida: o juiz acolheu todos os pedidos (como leva a crer o dispositivo) ou apenas um deles (como aponta a fundamentação)? No caso, a interpretação correta é a que extrai deste texto aquilo que parece ser a vontade do órgão julgador, revelada no enunciado mais completo e analítico da fundamentação: acolheu-se apenas um dos pedidos formulados, e não todos eles.
O art. 113 do Código Civil enuncia, ainda, que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. A aplicação do dispositivo à interpretação da decisão judicial é clara, até mesmo como reforço à incidência do princípio da boa-fé processual.
Os signos (palavras, números e outros símbolos) utilizados pelo órgão julgador na decisão devem ser interpretados de acordo com a boa-fé e com os usos do lugar de sua celebração. Se uma determinada palavra vinha sendo utilizada, ao longo de todo o processo, em uma determinada acepção, a interpretação da decisão em que esta palavra aparece não pode, por exemplo, dar a ela um sentido diverso. Se, em outro exemplo, em determinada comunidade, uma expressão consagrou-se, pelo uso, em um sentido, não se pode, ao interpretá-la posteriormente, dar a ela um sentido incompatível com aquele que a ela sempre se atribuiu.
Embora sem fundamentar-se no princípio da boa-fé, foi assim que a 4ª T. do STJ encaminhou-se no julgamento do AgRg no AREsp n. 94.186/PR, rel. Maria Isabel Gallotti, em 07.08.2012, acórdão publicado no DJe de 14.08.2012: “Não há que se falar em ofensa à coisa julgada quando o julgador, diante da imprecisão do comando sentencial, confere nova interpretação da sentença exequenda, de forma a viabilizar a condenação imposta”.
d) Os embargos de declaração podem funcionar como um instrumento para orientar a interpretação, já que eles se propõem a esclarecer os termos da decisão (art. 535, CPC).
e) Não é apenas o prolator da decisão que pode interpretá-la: o juízo da liquidação ou da execução – que nem sempre será o juízo da sentença – e o juízo que está diante do precedente judicial, por exemplo, também deverão interpretá-la.
Esse é um esboço. Muito ainda há de ser construído.
Em 14.12.2012.
Fredie Didier Jr.
Notas para uma teoria da interpretação da decisão judicial.
A decisão judicial é um exemplo de enunciado normativo. De sua interpretação podem ser extraídas normas jurídicas.
No mínimo, extrai-se da decisão uma norma jurídica individualizada, normalmente aferível da parte dispositiva da decisão, que regula o caso submetido à apreciação jurisdicional – no mínimo, pois o dispositivo da decisão pode ter conteúdo complexo, com vários capítulos. Assim, dele seria possível extrair diversas normas jurídicas individualizadas, tantas quantas seja o número de capítulos. Da sua fundamentação extrai-se a norma jurídica geral, construída à luz do caso concreto, que tem aptidão para servir de modelo para a solução de casos semelhantes àquele.
A decisão há de ser interpretada, portanto: quer para definir-se qual é a regra jurídica que regulará o caso, quer para dela extrair-se a norma jurídica geral que funcionará como precedente.
A interpretação da decisão é tema importantíssimo. A definição dos limites da coisa julgada dependerá, necessariamente, da interpretação da decisão. Não é por acaso que se costuma, em execução de sentença, alegar ofensa à coisa julgada, baseando-se exatamente em questões relacionadas à interpretação da sentença.
O tema merece atenção e destaque que não costuma ter. Não é o caso de revisar toda a teoria da interpretação jurídica, o que seria impossível e inapropriado. O objetivo deste editorial é apresentar as noções iniciais para a interpretação de uma decisão judicial.
É possível traçar um esboço para uma teoria da interpretação da decisão judicial. Seguem as premissas de que se deve partir para tanto.
a) Dispositivo e fundamentação devem ser interpretados conjuntamente. A compreensão do dispositivo depende do exame da fundamentação, que também somente será devidamente interpretada a partir do que foi enunciado no dispositivo. A decisão há de ser interpretada, enfim, como um todo. Trata-se de aplicar a técnica da intepretação sistemática à compreensão da decisão judicial.
b) As postulações de ambas as partes são dados que sempre devem ser levados em consideração para a intepretação da decisão. A definição precisa da norma jurídica extraída da sentença não prescinde do exame do que foi postulado pelas partes, limite que é do exercício da função jurisdicional, como define a regra da congruência objetiva, já examinada (arts. 128 e 460, CPC).
O comportamento das partes também passa a ser um dado relevante para a compreensão do que foi demandado e, por consequência, do que foi decidido. As manifestações da parte ao longo de todo o processo, assim como comportamentos adotados fora do processo, não podem ser ignorados na interpretação da decisão.
Imagine que a parte se tenha manifestado, durante o processo, sempre em uma direção, sobretudo em relação à interpretação do seu pedido. Esse comportamento torna-se um elemento imprescindível na interpretação da decisão.
Pense, ainda, na hipótese de a parte, ao formalizar negócios jurídicos extraprocessuais, ter adotado um sentido às postulações que fez em juízo. Por exemplo, em um negócio, a parte refere-se expressamente ao conteúdo de um processo judicial em curso. Esse comportamento passa a ser também relevantíssimo para a interpretação da sua postulação e, obviamente, da decisão a respeito dela.
A identificação da ratio decidendi – elemento normativo do precedente judicial– depende, também, necessariamente do exame do caso de que se originou: exame do problema e dos contextos fático e jurídico submetidos ao órgão jurisdicional. Esse é, fundamentalmente, o propósito do distinguishing (método de comparação entre o precedente e o caso concreto).
O Superior Tribunal de Justiça se tem utilizado destes dois critérios para interpretar a decisão judicial. A propósito: “Havendo dúvidas na interpretação do dispositivo da sentença, deve-se preferir a que seja mais conforme à fundamentação e aos limites da lide, em conformidade com o pedido formulado no processo. Não há sentido em se interpretar que foi proferida sentença ultra ou extra petita, se é possível, sem desvirtuar seu conteúdo, interpretá-la em conformidade com os limites do pedido inicial”. (STJ, REsp n. 818.614/MA, Rel. Ministra Nancy Andrighi, publicado no DJ de 20.11.2006).
c) Aplicam-se à interpretação da decisão judicial as normas de interpretação dos atos jurídicos; ou seja, as normas que disciplinam a interpretação das declarações de vontade.
O art. 112 do Código Civil, por exemplo, enuncia que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”. Trata-se de dispositivo plenamente aplicável à interpretação da decisão judicial.
Embora a interpretação literal seja o ponto de partida – uma interpretação que contrarie frontalmente o texto dificilmente será considerada como legítima –, ela não é a única técnica possível de interpretação. A interpretação teleológica também é importante. E é disso que trata o art. 112 do Código Civil.
Vejamos um exemplo. Imagine-se uma decisão em que, na fundamentação, há expressa manifestação sobre a tese jurídica a ser aplicada e o âmbito de incidência da norma jurídica individualizada. O julgador diz que acolhe apenas um dos pedidos formulados. No dispositivo, porém, afirma que julga procedente a ação, “nos termos do pedido formulado pelo demandante”. Surge a dúvida: o juiz acolheu todos os pedidos (como leva a crer o dispositivo) ou apenas um deles (como aponta a fundamentação)? No caso, a interpretação correta é a que extrai deste texto aquilo que parece ser a vontade do órgão julgador, revelada no enunciado mais completo e analítico da fundamentação: acolheu-se apenas um dos pedidos formulados, e não todos eles.
O art. 113 do Código Civil enuncia, ainda, que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. A aplicação do dispositivo à interpretação da decisão judicial é clara, até mesmo como reforço à incidência do princípio da boa-fé processual.
Os signos (palavras, números e outros símbolos) utilizados pelo órgão julgador na decisão devem ser interpretados de acordo com a boa-fé e com os usos do lugar de sua celebração. Se uma determinada palavra vinha sendo utilizada, ao longo de todo o processo, em uma determinada acepção, a interpretação da decisão em que esta palavra aparece não pode, por exemplo, dar a ela um sentido diverso. Se, em outro exemplo, em determinada comunidade, uma expressão consagrou-se, pelo uso, em um sentido, não se pode, ao interpretá-la posteriormente, dar a ela um sentido incompatível com aquele que a ela sempre se atribuiu.
Embora sem fundamentar-se no princípio da boa-fé, foi assim que a 4ª T. do STJ encaminhou-se no julgamento do AgRg no AREsp n. 94.186/PR, rel. Maria Isabel Gallotti, em 07.08.2012, acórdão publicado no DJe de 14.08.2012: “Não há que se falar em ofensa à coisa julgada quando o julgador, diante da imprecisão do comando sentencial, confere nova interpretação da sentença exequenda, de forma a viabilizar a condenação imposta”.
d) Os embargos de declaração podem funcionar como um instrumento para orientar a interpretação, já que eles se propõem a esclarecer os termos da decisão (art. 535, CPC).
e) Não é apenas o prolator da decisão que pode interpretá-la: o juízo da liquidação ou da execução – que nem sempre será o juízo da sentença – e o juízo que está diante do precedente judicial, por exemplo, também deverão interpretá-la.
Esse é um esboço. Muito ainda há de ser construído.
Em 14.12.2012.
Fredie Didier Jr.
Notas para uma teoria da interpretação da decisão judicial.
A decisão judicial é um exemplo de enunciado normativo. De sua interpretação podem ser extraídas normas jurídicas.
No mínimo, extrai-se da decisão uma norma jurídica individualizada, normalmente aferível da parte dispositiva da decisão, que regula o caso submetido à apreciação jurisdicional – no mínimo, pois o dispositivo da decisão pode ter conteúdo complexo, com vários capítulos. Assim, dele seria possível extrair diversas normas jurídicas individualizadas, tantas quantas seja o número de capítulos. Da sua fundamentação extrai-se a norma jurídica geral, construída à luz do caso concreto, que tem aptidão para servir de modelo para a solução de casos semelhantes àquele.
A decisão há de ser interpretada, portanto: quer para definir-se qual é a regra jurídica que regulará o caso, quer para dela extrair-se a norma jurídica geral que funcionará como precedente.
A interpretação da decisão é tema importantíssimo. A definição dos limites da coisa julgada dependerá, necessariamente, da interpretação da decisão. Não é por acaso que se costuma, em execução de sentença, alegar ofensa à coisa julgada, baseando-se exatamente em questões relacionadas à interpretação da sentença.
O tema merece atenção e destaque que não costuma ter. Não é o caso de revisar toda a teoria da interpretação jurídica, o que seria impossível e inapropriado. O objetivo deste editorial é apresentar as noções iniciais para a interpretação de uma decisão judicial.
É possível traçar um esboço para uma teoria da interpretação da decisão judicial. Seguem as premissas de que se deve partir para tanto.
a) Dispositivo e fundamentação devem ser interpretados conjuntamente. A compreensão do dispositivo depende do exame da fundamentação, que também somente será devidamente interpretada a partir do que foi enunciado no dispositivo. A decisão há de ser interpretada, enfim, como um todo. Trata-se de aplicar a técnica da intepretação sistemática à compreensão da decisão judicial.
b) As postulações de ambas as partes são dados que sempre devem ser levados em consideração para a intepretação da decisão. A definição precisa da norma jurídica extraída da sentença não prescinde do exame do que foi postulado pelas partes, limite que é do exercício da função jurisdicional, como define a regra da congruência objetiva, já examinada (arts. 128 e 460, CPC).
O comportamento das partes também passa a ser um dado relevante para a compreensão do que foi demandado e, por consequência, do que foi decidido. As manifestações da parte ao longo de todo o processo, assim como comportamentos adotados fora do processo, não podem ser ignorados na interpretação da decisão.
Imagine que a parte se tenha manifestado, durante o processo, sempre em uma direção, sobretudo em relação à interpretação do seu pedido. Esse comportamento torna-se um elemento imprescindível na interpretação da decisão.
Pense, ainda, na hipótese de a parte, ao formalizar negócios jurídicos extraprocessuais, ter adotado um sentido às postulações que fez em juízo. Por exemplo, em um negócio, a parte refere-se expressamente ao conteúdo de um processo judicial em curso. Esse comportamento passa a ser também relevantíssimo para a interpretação da sua postulação e, obviamente, da decisão a respeito dela.
A identificação da ratio decidendi – elemento normativo do precedente judicial– depende, também, necessariamente do exame do caso de que se originou: exame do problema e dos contextos fático e jurídico submetidos ao órgão jurisdicional. Esse é, fundamentalmente, o propósito do distinguishing (método de comparação entre o precedente e o caso concreto).
O Superior Tribunal de Justiça se tem utilizado destes dois critérios para interpretar a decisão judicial. A propósito: “Havendo dúvidas na interpretação do dispositivo da sentença, deve-se preferir a que seja mais conforme à fundamentação e aos limites da lide, em conformidade com o pedido formulado no processo. Não há sentido em se interpretar que foi proferida sentença ultra ou extra petita, se é possível, sem desvirtuar seu conteúdo, interpretá-la em conformidade com os limites do pedido inicial”. (STJ, REsp n. 818.614/MA, Rel. Ministra Nancy Andrighi, publicado no DJ de 20.11.2006).
c) Aplicam-se à interpretação da decisão judicial as normas de interpretação dos atos jurídicos; ou seja, as normas que disciplinam a interpretação das declarações de vontade.
O art. 112 do Código Civil, por exemplo, enuncia que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”. Trata-se de dispositivo plenamente aplicável à interpretação da decisão judicial.
Embora a interpretação literal seja o ponto de partida – uma interpretação que contrarie frontalmente o texto dificilmente será considerada como legítima –, ela não é a única técnica possível de interpretação. A interpretação teleológica também é importante. E é disso que trata o art. 112 do Código Civil.
Vejamos um exemplo. Imagine-se uma decisão em que, na fundamentação, há expressa manifestação sobre a tese jurídica a ser aplicada e o âmbito de incidência da norma jurídica individualizada. O julgador diz que acolhe apenas um dos pedidos formulados. No dispositivo, porém, afirma que julga procedente a ação, “nos termos do pedido formulado pelo demandante”. Surge a dúvida: o juiz acolheu todos os pedidos (como leva a crer o dispositivo) ou apenas um deles (como aponta a fundamentação)? No caso, a interpretação correta é a que extrai deste texto aquilo que parece ser a vontade do órgão julgador, revelada no enunciado mais completo e analítico da fundamentação: acolheu-se apenas um dos pedidos formulados, e não todos eles.
O art. 113 do Código Civil enuncia, ainda, que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. A aplicação do dispositivo à interpretação da decisão judicial é clara, até mesmo como reforço à incidência do princípio da boa-fé processual.
Os signos (palavras, números e outros símbolos) utilizados pelo órgão julgador na decisão devem ser interpretados de acordo com a boa-fé e com os usos do lugar de sua celebração. Se uma determinada palavra vinha sendo utilizada, ao longo de todo o processo, em uma determinada acepção, a interpretação da decisão em que esta palavra aparece não pode, por exemplo, dar a ela um sentido diverso. Se, em outro exemplo, em determinada comunidade, uma expressão consagrou-se, pelo uso, em um sentido, não se pode, ao interpretá-la posteriormente, dar a ela um sentido incompatível com aquele que a ela sempre se atribuiu.
Embora sem fundamentar-se no princípio da boa-fé, foi assim que a 4ª T. do STJ encaminhou-se no julgamento do AgRg no AREsp n. 94.186/PR, rel. Maria Isabel Gallotti, em 07.08.2012, acórdão publicado no DJe de 14.08.2012: “Não há que se falar em ofensa à coisa julgada quando o julgador, diante da imprecisão do comando sentencial, confere nova interpretação da sentença exequenda, de forma a viabilizar a condenação imposta”.
d) Os embargos de declaração podem funcionar como um instrumento para orientar a interpretação, já que eles se propõem a esclarecer os termos da decisão (art. 535, CPC).
e) Não é apenas o prolator da decisão que pode interpretá-la: o juízo da liquidação ou da execução – que nem sempre será o juízo da sentença – e o juízo que está diante do precedente judicial, por exemplo, também deverão interpretá-la.
Esse é um esboço. Muito ainda há de ser construído.
Em 14.12.2012.
Fredie Didier Jr.
Notas para uma teoria da interpretação da decisão judicial.
A decisão judicial é um exemplo de enunciado normativo. De sua interpretação podem ser extraídas normas jurídicas.
No mínimo, extrai-se da decisão uma norma jurídica individualizada, normalmente aferível da parte dispositiva da decisão, que regula o caso submetido à apreciação jurisdicional – no mínimo, pois o dispositivo da decisão pode ter conteúdo complexo, com vários capítulos. Assim, dele seria possível extrair diversas normas jurídicas individualizadas, tantas quantas seja o número de capítulos. Da sua fundamentação extrai-se a norma jurídica geral, construída à luz do caso concreto, que tem aptidão para servir de modelo para a solução de casos semelhantes àquele.
A decisão há de ser interpretada, portanto: quer para definir-se qual é a regra jurídica que regulará o caso, quer para dela extrair-se a norma jurídica geral que funcionará como precedente.
A interpretação da decisão é tema importantíssimo. A definição dos limites da coisa julgada dependerá, necessariamente, da interpretação da decisão. Não é por acaso que se costuma, em execução de sentença, alegar ofensa à coisa julgada, baseando-se exatamente em questões relacionadas à interpretação da sentença.
O tema merece atenção e destaque que não costuma ter. Não é o caso de revisar toda a teoria da interpretação jurídica, o que seria impossível e inapropriado. O objetivo deste editorial é apresentar as noções iniciais para a interpretação de uma decisão judicial.
É possível traçar um esboço para uma teoria da interpretação da decisão judicial. Seguem as premissas de que se deve partir para tanto.
a) Dispositivo e fundamentação devem ser interpretados conjuntamente. A compreensão do dispositivo depende do exame da fundamentação, que também somente será devidamente interpretada a partir do que foi enunciado no dispositivo. A decisão há de ser interpretada, enfim, como um todo. Trata-se de aplicar a técnica da intepretação sistemática à compreensão da decisão judicial.
b) As postulações de ambas as partes são dados que sempre devem ser levados em consideração para a intepretação da decisão. A definição precisa da norma jurídica extraída da sentença não prescinde do exame do que foi postulado pelas partes, limite que é do exercício da função jurisdicional, como define a regra da congruência objetiva, já examinada (arts. 128 e 460, CPC).
O comportamento das partes também passa a ser um dado relevante para a compreensão do que foi demandado e, por consequência, do que foi decidido. As manifestações da parte ao longo de todo o processo, assim como comportamentos adotados fora do processo, não podem ser ignorados na interpretação da decisão.
Imagine que a parte se tenha manifestado, durante o processo, sempre em uma direção, sobretudo em relação à interpretação do seu pedido. Esse comportamento torna-se um elemento imprescindível na interpretação da decisão.
Pense, ainda, na hipótese de a parte, ao formalizar negócios jurídicos extraprocessuais, ter adotado um sentido às postulações que fez em juízo. Por exemplo, em um negócio, a parte refere-se expressamente ao conteúdo de um processo judicial em curso. Esse comportamento passa a ser também relevantíssimo para a interpretação da sua postulação e, obviamente, da decisão a respeito dela.
A identificação da ratio decidendi – elemento normativo do precedente judicial– depende, também, necessariamente do exame do caso de que se originou: exame do problema e dos contextos fático e jurídico submetidos ao órgão jurisdicional. Esse é, fundamentalmente, o propósito do distinguishing (método de comparação entre o precedente e o caso concreto).
O Superior Tribunal de Justiça se tem utilizado destes dois critérios para interpretar a decisão judicial. A propósito: “Havendo dúvidas na interpretação do dispositivo da sentença, deve-se preferir a que seja mais conforme à fundamentação e aos limites da lide, em conformidade com o pedido formulado no processo. Não há sentido em se interpretar que foi proferida sentença ultra ou extra petita, se é possível, sem desvirtuar seu conteúdo, interpretá-la em conformidade com os limites do pedido inicial”. (STJ, REsp n. 818.614/MA, Rel. Ministra Nancy Andrighi, publicado no DJ de 20.11.2006).
c) Aplicam-se à interpretação da decisão judicial as normas de interpretação dos atos jurídicos; ou seja, as normas que disciplinam a interpretação das declarações de vontade.
O art. 112 do Código Civil, por exemplo, enuncia que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”. Trata-se de dispositivo plenamente aplicável à interpretação da decisão judicial.
Embora a interpretação literal seja o ponto de partida – uma interpretação que contrarie frontalmente o texto dificilmente será considerada como legítima –, ela não é a única técnica possível de interpretação. A interpretação teleológica também é importante. E é disso que trata o art. 112 do Código Civil.
Vejamos um exemplo. Imagine-se uma decisão em que, na fundamentação, há expressa manifestação sobre a tese jurídica a ser aplicada e o âmbito de incidência da norma jurídica individualizada. O julgador diz que acolhe apenas um dos pedidos formulados. No dispositivo, porém, afirma que julga procedente a ação, “nos termos do pedido formulado pelo demandante”. Surge a dúvida: o juiz acolheu todos os pedidos (como leva a crer o dispositivo) ou apenas um deles (como aponta a fundamentação)? No caso, a interpretação correta é a que extrai deste texto aquilo que parece ser a vontade do órgão julgador, revelada no enunciado mais completo e analítico da fundamentação: acolheu-se apenas um dos pedidos formulados, e não todos eles.
O art. 113 do Código Civil enuncia, ainda, que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. A aplicação do dispositivo à interpretação da decisão judicial é clara, até mesmo como reforço à incidência do princípio da boa-fé processual.
Os signos (palavras, números e outros símbolos) utilizados pelo órgão julgador na decisão devem ser interpretados de acordo com a boa-fé e com os usos do lugar de sua celebração. Se uma determinada palavra vinha sendo utilizada, ao longo de todo o processo, em uma determinada acepção, a interpretação da decisão em que esta palavra aparece não pode, por exemplo, dar a ela um sentido diverso. Se, em outro exemplo, em determinada comunidade, uma expressão consagrou-se, pelo uso, em um sentido, não se pode, ao interpretá-la posteriormente, dar a ela um sentido incompatível com aquele que a ela sempre se atribuiu.
Embora sem fundamentar-se no princípio da boa-fé, foi assim que a 4ª T. do STJ encaminhou-se no julgamento do AgRg no AREsp n. 94.186/PR, rel. Maria Isabel Gallotti, em 07.08.2012, acórdão publicado no DJe de 14.08.2012: “Não há que se falar em ofensa à coisa julgada quando o julgador, diante da imprecisão do comando sentencial, confere nova interpretação da sentença exequenda, de forma a viabilizar a condenação imposta”.
d) Os embargos de declaração podem funcionar como um instrumento para orientar a interpretação, já que eles se propõem a esclarecer os termos da decisão (art. 535, CPC).
e) Não é apenas o prolator da decisão que pode interpretá-la: o juízo da liquidação ou da execução – que nem sempre será o juízo da sentença – e o juízo que está diante do precedente judicial, por exemplo, também deverão interpretá-la.
Esse é um esboço. Muito ainda há de ser construído.
Em 14.12.2012.
Fredie Didier Jr.