Editorial 151

Razões para um novo CPC. Confiteor.

O projeto de novo Código de Processo Civil (CPC) é, possivelmente, o mais importante projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados. Ao menos no que diz respeito ao impacto na vida dos cidadãos brasileiros.
Isso porque o Código de Processo serve para a tutela de todas as relações jurídicas não criminais – civis, consumeristas, trabalhistas, administrativas etc.
Desde setembro de 2011, a Câmara dos Deputados vem debatendo, intensamente, o projeto, tal como veio do Senado Federal.
O atual Código de Processo Civil é de 1973. Há diversos motivos que justificam, talvez imponham, a elaboração de um novo Código.
Em primeiro lugar, o CPC/1973 passou por tantas revisões (mais de sessenta leis o modificaram), tão substanciais algumas delas, que, atualmente, o Código transformou-se em uma colcha de retalhos, com grande perda sistemática – que, de resto, é o principal atributo que um código deve ter.
Mas o que realmente impõe um novo CPC é um motivo de outra natureza.
Nestas quase quatro décadas, o país e o mundo passaram por tantas transformações, que não seria incorreto dizer que praticamente todos os paradigmas que inspiraram o CPC de 1973 foram revistos ou superados. As mudanças se deram nos planos normativo, científico, tecnológico e social.
Revolução jurídica.
Entre 1973 e 2012, tivemos, apenas para exemplificar, uma nova Constituição Federal (1988), um novo Código Civil (2002) e o Código de Defesa do Consumidor (CDC, 1990) – apenas para citar três exemplos de conjuntos de normas que alteraram profundamente o direito brasileiro. O Código de 1973, por óbvio, não foi elaborado para uma realidade jurídica tão diferente. É preciso construir um Código de Processo Civil adequado a essa nova estrutura jurídica.
Alguns exemplos:

  1. O novo CPC deve dar ao Ministério Público o tratamento adequado ao seu atual perfil constitucional, muito distinto daquele que vigia em 1973. Para ilustrar, é preciso rever a necessidade de intervenção do Ministério Público em qualquer ação de estado – exigência de um tempo em que se proibia o divórcio.
  2. O CPC/1973 não menciona a Defensoria Pública. Trata-se de omissão inaceitável, notadamente tendo em vista o papel que esta instituição alcançou com a CF/88.
  3. A arbitragem, no Brasil, praticamente não existia em 1973. Atualmente, o Brasil é o quarto país do mundo em número de arbitragens na Câmara de Comércio Internacional. O CPC/1973 pressupõe a realidade da arbitragem daquela época. É preciso construir um código adequado a esta realidade, prevendo, por exemplo, o procedimento da carta arbitral e criando a alegação autônoma da convenção de arbitragem.
  4. Não por acaso, a Câmara dos Deputados está debruçada na construção de um modelo adequado para a disciplina processual da desconsideração da personalidade jurídica – instituto consagrado no CDC e no Código Civil, amplamente utilizado na prática forense, mas simplesmente ignorado pelo CPC 1973.

Revolução científica.
A ciência jurídica passou, também, por sensíveis transformações nos últimos anos. A ciência jurídica brasileira evoluiu deveras neste período. Basta mencionar o fato de que, há quarenta anos, praticamente não havia no Brasil cursos de pós-graduação em sentido estrito (mestrado e doutorado) em Direito. Atualmente, temos possivelmente o maior programa de formação de mestres e doutores em Direito do mundo.
Alguns exemplos desta transformação científica: hoje, diferentemente de outrora, há o generalizado reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e do papel criativo e também normativo da função jurisdicional – as decisões recentes do Supremo Tribunal Federal confirmam isso.
O Código de Processo Civil deve espelhar o atual estado da arte da ciência jurídica brasileira. É por isso que a Câmara dos Deputados está atenta para a necessidade de aprimorar as regras que impõem motivação adequada na aplicação dos princípios jurídicos. Além disso, a Câmara dos Deputados tem discutido a possibilidade de consagrar, em enunciados expressos, princípios processuais imprescindíveis para a construção de um modelo de processo civil adequado à Constituição Federal, como os princípios da boa-fé processual e da eficiência.  É preciso, ainda, criar uma disciplina jurídica minuciosa para a interpretação, aplicação e superação dos precedentes judiciais: estabelecendo regras que auxiliem na identificação, na interpretação e na superação de um precedente.
O CPC/1973 considerava os princípios ora como técnica de preenchimento de lacuna ora como jargão retórico. Trata-se de disciplina totalmente incompatível com o atual estádio do pensamento jurídico.
Revolução tecnológica.
O processo em autos eletrônicos é uma realidade inevitável. Pode-se afirmar, inclusive, que o Brasil é um dos países mais avançados no mundo neste tipo de tecnologia. Em poucos anos, a documentação de toda tramitação processual no Brasil será eletrônica. Um novo Código de Processo Civil deve ser pensado para regular esta realidade, total e justificadamente ignorada pelo CC 1973. Os deputados que compõem a Comissão Especial preocupam-se muito com isso e há propostas muito boas no sentido de aperfeiçoar o projeto neste ponto, inclusive com a inclusão de um capítulo dedicado à consagração das normas fundamentais do processo eletrônico, a possibilidade de interposição de apelação diretamente no tribunal (com grande economia de tempo), a disciplina da contagem de prazos etc.
A questão crucial aqui é a seguinte: estamos vivendo uma era de mudança do suporte da documentação do processo. Isso não acontecia há séculos, sem exagero. Até bem pouco tempo, utilizava-se basicamente o mesmo suporte que era utilizado no medievo: o papel.
Para que se tenha uma ideia desta transformação, há algumas décadas, discutia-se a possibilidade de a parte apresentar petições datilografadas – até então, eram escritas à mão. Discutia-se a respeito, pois seria difícil, assim, identificar a autoria da peça. A discussão, que hoje parece estranha, era muito pertinente à época. De todo jeito, discutia-se em torno de um mesmo modelo de suporte, o papel.
A realidade hoje é completamente distinta, e um novo CPC deve partir deste pressuposto.
Revolução social.
No plano social, as mudanças foram ainda mais impressionantes.
O acesso à justiça foi muito facilitado nos últimos anos; o progresso econômico, com a incorporação de uma massa de consumidores, antes alheia à economia, repercutiu diretamente no exercício da função jurisdicional, com um aumento exponencial do número de processos em tramitação.
A massificação dos conflitos, fenômeno bastante conhecido e estudado, é um dado de fato que não pode ser ignorado na elaboração de um novo CPC. O Senado propôs a criação de instrumentos que visam dar mais racionalidade ao processamento das demandas de massa – dentre estes instrumentos, notabilizou-se o “incidente de resolução de demandas repetitivas”, que tem por objetivo a fixação de uma tese jurídica vinculante, que sirva para a solução de todas as causas homogêneas.
Trata-se de um dos pontos mais polêmicos do projeto: quase todos concordam com a sua existência, mas todos reconhecem a necessidade de seu aperfeiçoamento, sobretudo para impedir a instauração de um incidente antes de a discussão estar minimamente amadurecida (não é possível chegar a um consenso sobre uma questão, sem que tenha havido o mínimo de dissenso). A Câmara dos Deputados trouxe o tema para o centro da discussão e trará boas contribuições para o aprimoramento deste novo instituto.
Essas são, em breves linhas, as razões que justificam um novo CPC.
Fiz questão de escrever este pequeno editorial, como forma de apresentar publicamente o meu confiteor. É que, em 2008, defendi publicamente a desnecessidade de um novo CPC. Um ano de discussão do assunto na Câmara, tendo ouvido quase duas centenas de pessoas sobre o assunto, me fez mudar de opinião. Cumpro o meu dever de dar este esclarecimento público, reafirmando o postulado da minha atividade intelectual: o jogo da ciência não tem fim; quem não se predispõe a rever suas ideias deve sair da brincadeira.

Em 04.09.2012.
Fredie Didier Jr.

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