Peculiaridade da tradição jurídica brasileira. O art. 386 do Decreto n. 848/1890.
Tenho defendido, nos últimos anos, que a tradição jurídica brasileira é tão peculiar, que não parece correta a tentativa de encaixá-la em uma das duas tradições jurídicas ocidentais mais conhecidas: o civil law e o common law (a propósito, Curso de Direito Processual Civil, 14ª. ed., 2012, v. 1, p. 41 e segs.). Um dos meus atuais orientandos, Marcus Seixas Souza, que possui especial interesse pela História do Direito e o Direito Comparado, encontrou um precedente normativo no Direito brasileiro que é, no mínimo, interessante. Marcus mostrou-me a descoberta, que ele reconhece ser um reforço à ideia que venho defendendo, muito embora ele mesmo, Marcus, não encampe este meu entendimento. Este editorial é resultado, portanto, do diálogo franco e sempre, ao menos para mim, muito produtivo, que tento manter com meus orientandos, na Universidade Federal da Bahia. Reforçando a tese de que a tradição jurídica brasileira é, no mínimo, insólita, eis o art. 386 do Decreto n. 848/1890, um dos atos normativos que inaugurou a nossa República: “Constituirão legislação subsidiaria em casos omissos as antigas leis do processo criminal, civil e commercial, não sendo contrarias ás disposições e espirito do presente decreto. Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações juridicas na República dos Estados Unidos da America do Norte, os casos de common law e equity, serão tambem subsidiarios da jurisprudencia e processo federal”. Este Decreto estruturava a Justiça Federal e regulamentava o seu processo jurisdicional – à época, União e Estados possuíam competência legislativa em matéria processual. O curioso é que a Lei Federal n. 5.010/1966, que reestruturou a Justiça Federal, não possui enunciado semelhante, muito menos possui texto incompatível com esse antigo dispositivo. Ainda mais curioso é que este Decreto foi revogado por um Decreto n. 11 de 1991 (art. 4º) – mais de cem anos depois, portanto; e este Decreto n. 11/1991 também foi revogado (revogou-se o decreto que revogava), pelo Decreto n. 761/1993,sem ressalva alguma. Interessante é que, em 1891, o Decreto n. 848/1890 equivalia a uma lei; o Decreto presidencial de 1991 já não possuía esta natureza. Assim, poderia o segundo revogar o primeiro? Bom, de todo modo, a vigência formal por mais de cem anos deste dispositivo é um dado histórico que não pode ser ignorado. Em 04.08.2012. Fredie Didier Jr.