Editorial 147

O STJ está dando largos passos para superar um dos temas mais debatidos na doutrina processual coletiva brasileira, em torno do qual havia frontal oposição entre o entendimento doutrinário e a aplicação pelos tribunais: a inaplicabilidade dos limites territoriais do órgão prolator para definição da extensão erga omnes das sentenças coletivas (art. 16 da Lei da Ação Civil Pública). Aproveitando julgamento anterior, Resp n. 1.247.150/PR (Corte Especial, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJ de 12.12.2011), que introduziu novamente na jurisprudência do STJ a vexata questio dos limites territoriais do órgão prolator nas sentenças coletivas, a Min. Fátima Nancy Andrighi presta grande contribuição ao avanço da jurisprudência do Tribunal. Como sabemos, o processo coletivo implica uma revisitação de muitos institutos clássicos do processo, especialmente, mas não somente, a legitimação processual, a coisa julgada, a competência, a liquidação e a execução. Nosso modelo processual coletivo é muito avançado, e funciona. Mas algumas das soluções pensadas cuidadosamente pelos “pais fundadores” do “modelo processual coletivo brasileiro” não foram observadas por reformas legislativas posteriores, sendo atacadas expressamente para negar efetividade ao sistema. Esses ataques, muito decorrentes de medidas provisórias, convertidas ou não, em lei, foram severamente criticados na doutrina como formas de tornar a ACP “refém do autoritarismo”, na expressão de conhecido artigo de Ada Pellegrini Grinover. O caso que acaba de ser julgado no STJ é um dos exemplos mais bem acabados desse fenômeno: a malsinada limitação territorial da coisa julgada, surgida primeiramente por medida provisória e, depois, consolidada pelo Poder Legislativo pela Lei n. 9.494/1997, que alterou o teor do art. 16 da LACP, de acordo com esse artigo, a decisão coletiva só é eficaz nos limites territoriais do órgão julgador. As críticas a esse dispositivo são inúmeras. Tratamos disso no v. 4 do Curso de Direito Processual Civil, inteiramente dedicado ao estudo do processo coletivo. Convém reproduzir, em síntese, nossos argumentos: a) a norma representa ofensa constitucional aos princípios da igualdade e do acesso à jurisdição, criando diferença no tratamento processual dado aos brasileiros e dificultando a proteção dos direitos coletivos em juízo; b) gera prejuízo à economia processual e fomenta o conflito lógico e prático de julgados, com descrença nas instituições de justiça, pois uma sentença do Rio Grande do Sul pode deixar de garantir um direito reconhecido pelo Rio Grande do Norte; c) ataca a indivisibilidade ontológica do objeto da tutela jurisdicional cole¬tiva, ou seja, é da natureza dos direitos coletivos lato sensu sua indivisibilidade no curso da demanda coletiva (art. 81, parágrafo único do CDC); d) há, ainda, equívoco na técnica legislativa, como bem adverte, na decisão, a Min. Nancy Andrighi, pois confundem-se com¬petência e jurisdição, autoridade da sentença com eficácia decorrente do comando jurisdicional e os limites objetivos e subjetivos da coisa julgada, valendo repisar que a jurisdição é una em todo o território nacional, os juízes no Brasil decidem para todo o país, não apenas nos limites de seu território; e) por fim, existe a ineficácia da própria regra de competência em si em face do microssistema do processo coletivo (art. 21 da LACP c/c o art. 90 do CDC), vez que o legislador estabeleceu expressamente no art. 93 do CDC (lembre-se, aplicável a todo o sistema das ações coletivas) que a competência para julgamento de ilícito de âmbito regional ou nacional é do juízo da capital dos Estados ou no Distrito Federal, portanto, nos termos da Lei em comento, ampliou a “jurisdição” do órgão prolator para todo o território nacional, quando este for o juízo da capital do Estado. Embora com alguma oscilação, o STJ vinha adotando a posição legalista, limitando a eficácia territorial da coisa julgada, nos estritos termos da lei citada, ou seja, “nos limites territoriais do órgão prolator” (Cf., no entendimento anterior, AgRg no REsp 1105214/DF). Recentemente, em decisão da Corte Especial do STJ, ao julgar recursos especiais repetitivos (art. 543-C, do CPC), o entendimento consolidado começou a ser reformulado. Na ementa dos precedentes (REsp 1243887 e REsp 1247150), o STJ firmou a tese para os fins do art. 543-C do CPC estabelecendo: “os efeitos e a eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta,  para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo (arts. 468, 472 e 474, CPC e  93 e 103, CDC)”, ou seja, a sentença não está circunscrita aos limites territoriais do órgão prolator (lindes geográficos), mas somente a “extensão do dano” e “a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo”, isso decorre da conjugação dos arts. 93 e 103 do CDC, deixando claro que os direitos coletivos lato sensu são indivisíveis para fins de tutela, tutela que se dá molecularmente e não de forma individualizada. Naqueles casos o STJ afastou a aplicação da norma para consolidar o entendimento de que cabe ao consumidor (titular do direito individual vinculado à decisão genérica) escolher o juízo mais conveniente para promover a liquidação e a execução (o próprio domicílio, o do domicílio do réu, o do domicílio dos bens sujeitos à eventual expropriação ou o da sentença, art.475-P do CPC c/c art. 98, § 2º, I do CDC). Posicionamento que também sempre defendemos. A decisão aqui comentada veio reforçar este entendimento, conforme se depreende da ementa: PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO COLETIVA AJUIZADA POR SINDICATO. SOJA TRANSGÊNICA. COBRANÇA DE ROYALTIES. LIMINAR REVOGADA NO JULGAMENTO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. CABIMENTO DA AÇÃO COLETIVA. LEGITIMIDADE DO SINDICATO. PERTINÊNCIA TEMÁTICA. EFICÁCIA DA DECISÃO. LIMITAÇÃO À CIRCUNSCRIÇÃO DO ÓRGÃO PROLATOR. 1. O alegado direito à utilização, por agricultores, de sementes geneticamente modificadas de soja, nos termos da Lei de Cultivares, e a discussão acerca da inaplicabilidade da Lei de Patentes à espécie, consubstancia causa transindividual, com pedidos que buscam tutela de direitos coletivos em sentido estrito, e de direitos individuais homogêneos, de modo que nada se pode opor à discussão da matéria pela via da ação coletiva. 2. Há relevância social na discussão dos royalties cobrados pela venda de soja geneticamente modificada, uma vez que o respectivo pagamento necessariamente gera impacto no preço final do produto ao mercado. 3. A exigência de pertinência temática para que se admita a legitimidade de sindicatos na propositura de ações coletivas é mitigada pelo conteúdo do art. 8º, II, da CF, consoante a jurisprudência do STF. Para a Corte Suprema, o objeto do mandado de segurança coletivo será um direito dos associados, independentemente de guardar vínculo com os fins próprios da entidade impetrante do ‘writ’, exigindo-se, entretanto, que o direito esteja compreendido nas atividades exercidas pelos associados, mas não se exigindo que o direito seja peculiar, próprio, da classe. Precedente. 4. A Corte Especial do STJ já decidiu ser válida a limitação territorial disciplinada pelo art. 16 da LACP, com a redação dada pelo art. 2-A da Lei 9.494/97. Precedente. Recentemente, contudo, a matéria permaneceu em debate. 5. A distinção, defendida inicialmente por Liebman, entre os conceitos de eficácia e de autoridade da sentença, torna inóqua a limitação territorial dos efeitos da coisa julgada estabelecida pelo art. 16 da LAP. A coisa julgada é meramente a imutabilidade dos efeitos da sentença. Mesmo limitada aquela, os efeitos da sentença produzem-se erga omnes, para além dos limites da competência territorial do órgão julgador. 6. O art. 2º-A da Lei 9.494/94 restringe territorialmente a substituição processual nas hipóteses de ações propostas por entidades associativas, na defesa de interesses e direitos dos seus associados. A presente ação não foi proposta exclusivamente para a defesa dos interesses trabalhistas dos associados da entidade. Ela foi ajuizada objetivando tutelar, de maneira ampla, os direitos de todos os produtores rurais que laboram com sementes transgênicas de Soja RR, ou seja, foi ajuizada no interesse de toda a categoria profissional. Referida atuação é possível e vem sendo corroborada pela jurisprudência do STF. A limitação do art. 2-A, da Lei nº 9.494/97, portanto, não se aplica. 7. Recursos especiais conhecidos. Recurso da Monsanto improvido. Recurso dos Sindicatos provido. (REsp 1243386/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 26/06/2012) A maior novidade do precedente foi sem dúvida revisar o antigo entendimento que reconhecia plena vigência ao art. 16 caput da LACP e do seu corolário no art. 2º-A da Lei 9.494/1994. Excelente precedente, parabéns ao STJ que mostra sinais claros do amadurecimento da matéria em prol da maior efetividade material das ações coletivas. Espera-se que a oscilação termine e essa orientação se consolide em definitivo, e para todos os processos coletivos, não apenas para o processo coletivo do consumidor, atingindo todas as demais situações jurídicas coletivas merecedoras de tutela, em especial as relativas ao meio ambiente. Em 06.07.2012. Fredie Didier Jr. Hermes Zaneti Jr.
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