Editorial 131

É comum a doutrina realizar pesquisa na área jurídica com meras elucubrações, mesmo quando se procuram respostas para problemas essencialmente práticos, como o grande volume de recursos nos tribunais brasileiros. A necessidade de realização (e publicação) de pesquisas com viés mais empírico é algo que há muito tempo vem sendo defendido por setores da doutrina brasileira.
Recentemente, participamos de um projeto de pesquisa que teve o intuito de investigar as diversas mudanças legislativas operadas no recurso de agravo (o projeto foi aprovado pelo Edital n. 01/09 da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, e sua execução coube a duas equipes de pesquisadores – uma em Minas Gerais e outra na Bahia – sob a Coordenação Geral da Professora Miracy Barbosa Gustin).

O resultado da pesquisa mostra números surpreendentes. Percebe-se, por exemplo, que entre os anos de 2001 e 2009 o número de agravos de instrumento é muito semelhante ao número de apelações, tanto no Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), quanto no de Minas Gerais (TJ-MG).

No TJ-BA, no ano de 2001, foram interpostas 2.693 apelações e 3.119 agravos de instrumento.

Em 2009, no mesmo tribunal, foram interpostas 13.924 apelações e 8.987 agravos de instrumento.
Ou seja, o número de agravos de instrumento foi quase tão grande quanto o número de apelações.
Esses dados justificam as diversas alterações sofridas pelo agravo de instrumento durante a primeira década deste século, na tentativa de reordenar o fluxo de demandas nos tribunais a partir de uma tentativa de maior prevalência do agravo retido (trata-se aqui das leis 10.352/2001 e 11.187/2005).

Como o objetivo não foi atingido, o NCPC traz nova proposta para o regime de impugnação das interlocutórias. Após a tramitação do Anteprojeto no Senado Federal, o NCPC passou a ter a seguinte configuração: manteve-se a abolição do agravo retido (prevista no texto original), de modo que boa parte das interlocutórias seja impugnada no momento da apelação, e ampliou-se o rol das interlocutórias impugnáveis por agravo de instrumento (arts. 963 e 969 do NCPC; sobre exclusão do agravo retido, recomenda-se leitura do Editorial n. 82).

A nova versão do agravo de instrumento somente poderá ser manejada contra alguns tipos de decisões interlocutórias, trazidas em numerus clausus nos incisos do art. 969 do NCPC – embora, em alguns delas, haja o uso de termos indeterminados, o que abre o sistema. A vingar essa proposta, as partes não mais poderão valer-se do recurso naquelas hipóteses de cabimento historicamente suscitadas pela doutrina – e, de um modo geral, aceitas pela jurisprudência. Essas interlocutórias, que se tornarão irrecorríveis imediatamente, dizem respeito às situações em que, a despeito da existência de urgência, somente deve ser interposto agravo de instrumento em razão da incompatibilidade do agravo retido com a situação concreta.  

É intuitivo que as novas regras têm a intenção de tentar diminuir o número de agravos de instrumento interpostos nos tribunais. Sucede que isso provavelmente não ocorrerá.

Em outro momento das investigações, os pesquisadores do Estado da Bahia fizeram uma análise qualitativa dos agravos de instrumento existentes no TJ-BA no biênio 2008-2010, a partir de uma amostra de 5% do total dos recursos interpostos. Com base nesta análise – que no particular foi conduzida por um dos autores deste editorial (Daniel Gallo) – pôde-se verificar que: i) cerca de 60% do total dos agravos de instrumento levados ao TJ-BA teve como causa de pedir a possibilidade de lesão grave ou de difícil reparação (urgência); ii) 46,45% dos agravos de instrumento levados ao tribunal referem-se a processos em que são discutidas relações de consumo; iii) 17,64% dos agravos interpostos tinham o Estado como parte do processo principal, enquanto todas as relações de direito privado (com a exceção das relações de consumo), geraram apenas 15,96% dos agravos pesquisados; iv) 8,04% dos casos envolvem discussões em torno de interlocutórias proferidas em processos na fase de execução/cumprimento de sentença (com exceção das execuções fiscais); v) apenas em 11,88% dos agravos discutiram-se aqueles casos que passarão a ser irrecorríveis no NCPC (trata-se aqui daquelas decisões em que há incompatibilidade do agravo retido com a situação concreta).

Observa-se, com alguma clareza, que as causas tornadas imediatamente irrecorríveis pelo projeto do NCPC representam pouco menos de 12% dos agravos de instrumento ingressos no tribunal baiano. Ou seja, como serão mantidas as hipóteses de cabimento relativas à urgência, à execução civil, dentre outras previstas em lei, a modificação da norma processual deve alterar muito pouco a quantidade de recursos de agravo de instrumento existentes no TJ-BA.

Além disso, as novas regras do agravo de instrumento têm grande potencial para a criação de diversos problemas para os jurisdicionados. Com a nova sistemática é provável que tenhamos algo parecido com a conturbada legislação recursal do CPC de 1939 no tocante à impugnação das decisões interlocutórias. Também no CPC-39 havia a previsão casuística do cabimento dos agravos de instrumento, o que tornava a análise da interposição desses recursos uma atividade ingrata para as partes e seus advogados.

Os dados mostram, em verdade, que os processualistas e os pensadores da Política Judiciária e Legislativa devem alargar os seus horizontes de investigação e pesquisa, questionando se, de fato, vale a pena modificar tão profundamente o recurso de agravo (ou seja, mudar a lei processual) para que tenhamos uma redução tão singela no número de recursos interpostos nos tribunais.

Destacamos que esta reflexão deve ser feita pelos processualistas e por estudiosos de Política Judiciária e Legislativa, pois deve haver alguma resposta para o fato de as causas consumeristas e as causas em que o Estado é parte sejam as que mais gerem a interposição de agravos de instrumento.

Nesse sentido, deve-se refletir se, antes de alterar o sistema recursal nesse ponto, não seria mais conveniente a adoção, por exemplo, das seguintes medidas: i) fortalecer e dotar de eficácia as determinações emanadas por PROCONS, CODECONS e Agências Reguladores, a fim de inibir “danos em massa”, causados por litigantes habituais na seara consumerista; ii) permitir que autoridades estatais revisem os contratos de adesão antes de sua circulação no mercado, como possibilita o art. 54 do Código de Defesa do Consumidor; iii) incentivar/compelir os magistrados a possibilitar a “molecularização” da tutela do consumidor, quando perceberem a ocorrência de causas de massa nas Varas em que atuam, como estabelece o 7º da Lei da Ação Civil Pública (eis o seu texto: “Se, no exercício de suas funções, os juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a propositura da ação civil, remeterão peças ao Ministério Público para as providências cabíveis.”); iv) pensar na criação de normas que diminuam a litigância do Estado, ou que criem procedimentos mais simples para os entes públicos, como os Juizados Especiais da
Fazenda Pública, até hoje não instalados em estados como a Bahia; v) adotar providências que há muito tempo vêm sendo alardeadas pela doutrina (aumentar o efetivo de juízes e servidores, fortalecer os trabalhos das Corregedorias de Justiça, informatizar a Justiça, padronizar e racionalizar o trabalho dos cartórios das varas e secretarias, etc.).

Vale questionar, por fim, se a adoção de todas ou de algumas dessas providências não seria mais eficaz para a obtenção de um processo mais célere e eficiente, mesmo no segundo grau de jurisdição.  


Fredie Didier Jr.
Daniel Gallo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Este site usa cookies para lhe oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar neste site, você concorda com o uso de cookies.