30.08.2011.
Ausência de citação, contestação de ofício e procedência do pedido: lamentável precedente
Há notícias que, quando surgem, são inacreditáveis.
Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal negou seguimento a recurso extraordinário (RE 613.656/RN) sob o fundamento de ofensa meramente reflexa ou indireta à Constituição , em decisão cuja ementa dá notícia de uma preocupante prática que, infelizmente, se vem tornando comum no dia-a-dia forense em alguns Estados, principalmente em demandas submetidas à Justiça Federal de RJ, SP e RN.
Reproduzimos os principais trechos da ementa da decisão (destaques nossos):
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. GRATIFICAÇÃO. GDPST. EXTENSÃO AOS INATIVOS. (…)
2. Opostos embargos declaratórios, foram prestados os seguintes esclarecimentos: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ARTIGO 535 DO CPC. OMISSÃO CONFIGURADA. RECURSO PROVIDO. – Sempre que na sentença ou acórdão houver omissão, obscuridade ou contradição, cabem embargos de declaração, de acordo com o artigo 535 do CPC. – Alega a embargante que o acórdão impugnado foi omisso quanto à apreciação da questão relativa à nulidade absoluta da sentença por falta de citação da parte ré. – Constatada a existência da omissão apontada, o vício passa a ser sanado. – O FATO DE NÃO TER SIDO FORMALIZADA A CITAÇÃO DO RÉU, MAS ANEXADA AOS PRESENTES AUTOS CONTESTAÇÃO APRESENTADA PELA FUNASA EM DEMANDA IDÊNTICA, CULMINANDO COM PROLAÇÃO DE SENTENÇA DESFAVORÁVEL À DEMANDADA, NÃO FERE, NO CASO CONCRETO, OS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DO CONTRADITÓRIO, DA AMPLA DEFESA E DO JUIZ NATURAL NEM HÁ QUE SE FALAR EM USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DA PGF. – ASSIM COMO O JULGAMENTO DE PLANO DESFAVORÁVEL AO AUTOR, PREVISTO NO ART. 285-A, DO CPC, NÃO OFENDE A TAIS PRINCÍPIOS, A INCLUSÃO DE OFÍCIO DA PEÇA CONSTESTATÓRIA TAMBÉM NÃO O FAZ, POIS ALÉM DE O DEMANDADO PODER SE MANIFESTAR ACERCA DA SENTENÇA NO MOMENTO DO RECURSO, ALEGANDO QUESTÕES FÁTICAS PORVENTURA NÃO OBSERVADAS, A PEÇA DE DEFESA JÁ APRESENTADA EM OUTRAS AÇÕES DE IDÊNTICA NATUREZA, FIGURA NOS AUTOS E FOI OBJETO DE ANÁLISE PELO JUIZ. Alerta-se que tal solução não deve ser admitida em situações em que aja especificidades ou mesmo em demandas eventuais, resguardando tal mecanismo para a tutela objetivada dos direitos individuais homogêneos. Ou seja, para as ações de massa onde se enfrenta a situação idêntica em todos os caso, essa forma de saneamento, aliás, supre em parte uma lacuna decorrente da inexistência de súmula vinculante editada pelo STF para determinadas matérias já definidas, da inércia da publicação pelo Senado Federal da resolução a fim de suspender a eficácia de lei declarada inconstitucional pelo Supremo e da ausência de efeito vinculante dos julgamentos dos recursos extraordinários, na medida em que viabiliza, já na formação do processo, uma procedimentalização que se coadune com os precedentes dos Tribunais Superiores. – Preliminar de nulidade afastada. – Embargos providos. (…)
5. Quanto ao mais, o Tribunal de origem apreciou a controvérsia sob enfoque exclusivamente processual. Nessa contextura, afronta ao Magno Texto apenas ocorreria de modo reflexo ou indireto, o que não enseja a abertura da via extraordinária. Ante o exposto, e frente ao caput do art. 557 do CPC e ao § 1º do art. 21 do RI/STF, nego seguimento ao recurso.
(STF, RE 613.656/RN, rel. Min. Ayres Britto, j. 04.05.2011, DJe 12.05.2011)
Como se vê, a 1ª instância do Juizado Especial Federal (i) não citou a Fazenda Pública Ré; (ii) juntou de ofício cópia de alguma Contestação que o ente público apresentou em outro processo, cujo objeto foi considerado como semelhante ao processo em questão; e (iii) julgou parcialmente procedente o pedido do Autor. A Turma Recursal, por seu turno, considerou válido o procedimento, sob os seguintes argumentos: (i) a dispensa de citação seria admitida, sendo o art. 285-A um exemplo disso; (ii) a contestação de ofício supriria a falta de citação; e (iii) o contraditório não estaria sendo violado porque a Fazenda Pública teria a oportunidade de defender-se em grau recursal.
Esses 03 (três) fundamentos, data venia, não se sustentam.
A citação do Réu, corolário do contraditório (art. 5º, LV, CRFB) em um processo civil democrático e cooperativo, é ato essencial para angularizar a relação jurídica processual e submeter o demandado aos limites subjetivos da coisa julgada (art. 472, CPC). A existência de citação é requisito de validade de qualquer decisão proferida contra o réu. Não há qualquer exceção a essa regra. O art. 285-A do CPC, assim como o art. 295, permite decisão proferida sem citação, porque favorável ao réu. Trata-se de noção elementar de direito processual civil, que carece, inclusive, de maiores divagações. A diferença das situações impede a invocação do art. 285-A por analogia.
A falta de citação pode ser sanada pelo comparecimento espontâneo do réu (art. 214, §§1º e 2º, CPC). Ocorre que, no caso julgado pela Justiça Federal, sequer houve comparecimento espontâneo da ré, já que não foi ela quem elaborou e apresentou a contestação para aquele processo. Surpreendentemente, o próprio órgão jurisdicional contestou pelo ente público, reproduzindo peça defensiva oferecida em outro processo.
A não citação do ente público e a contestação de ofício pelo juízo, aliadas à procedência parcial do pedido, revelam que a demanda correu inteiramente à revelia da Fazenda Pública, que não tomou conhecimento da demanda, não teve oportunidade de defender-se e ainda veio a ser condenada.
Nesse ponto, surge o último deslize da decisão da Justiça Federal: a afirmação de que o contraditório estaria assegurado porque a Fazenda Pública poderá defender-se ao interpor recurso contra a sentença. Trata-se do tipo de argumento que prova demais: a prevalecer esse raciocínio, a citação, em qualquer caso, e não apenas nesse, seria dispensável, desde que se garantisse ao réu o direito de apelar. Ou seja: rigorosamente, restringiu-se o contraditório a apenas um de seus poderes: o direito de recorrer. O direito de influir no convencimento judicial, por exemplo, foi tolhido.
A situação se agrava pelo fato de tratar-se de demanda submetida a Juizado Especial Cível, onde não é cabível a interposição de recurso especial. E, embora caiba em tese o recurso extraordinário, o STF costuma não admiti-lo, como aconteceu neste caso, sob o fundamento da ofensa reflexa ou indireta à Constituição.
É certo que devem ser criadas técnicas de aceleração dos processos, notadamente quando se trata de causas repetitivas. Mas, perdão pelo truísmo: todas elas devem estar em conformidade com o devido processo legal e os seus corolários. Decisão proferida contra alguém sem contraditório é decisão nula. Em qualquer caso.
Salvador/Rio de Janeiro, 01.09.2011
Fredie Didier Jr.
Bruno Garcia Redondo