Recentemente, o julgamento de uma reclamação no STJ trouxe à tona antigo tema: o reconhecimento da deserção de um recurso em razão de preparo insuficiente (Reclamação n. 4.278-RJ, j. em 05.05.2011). No caso, faltavam ao preparo dois centavos de real (R$ 0,02).
Discutia-se a aplicação da regra do § 2º do art. 511 do CPC, que impõe a intimação do recorrente para complementar o preparo antes do juízo de inadmissibilidade do recurso, ao microssistema dos Juizados Especiais.
O STJ não conheceu da reclamação. Entendeu que a reclamação regulada pela Resolução n. 12/2009 do STJ (cf. editorial 79), ajuizada contra ato de turma recursal, somente é cabível para consolidar a interpretação do direito substantivo federal; não caberia, enfim, para a uniformização da jurisprudência em matéria de direito processual federal. Nada obstante o juízo de inadmissibilidade da reclamação, a relatora, em obter dictum, afirmou que, se enfrentasse o mérito, não acolheria a pretensão da autora, porque a regra do CPC é geral e não se aplica ao microssistema processual dos Juizados, que não a reproduz.
A decisão assusta e entristece.
Assusta, pois o Superior Tribunal de Justiça não reconheceu a absurdez de uma decisão que não conhece o recurso em razão do não pagamento de dois centavos. Não conhecer um recurso pela falta de preparo já é comportamento questionável, mas, vá lá!, é imposto pela ordem jurídica brasileira.
Sucede que o inadimplemento, no caso, é mínimo; em tais situações, o princípio da boa-fé impede que dele resultem conseqüências desproporcionais, tal como, no caso, o não conhecimento do recurso. A teoria do adimplemento substancial, corolário do princípio da boa-fé, já foi reconhecida inclusive pelo mesmo STJ (sobre o assunto, v. editorial n. 65, de 2009).
A regra do § 2º do art. 511 é uma concretização deste princípio.
Desconheço quem afirme que, no microssistema dos Juizados Especiais, não vigora o princípio da boa-fé processual. A eficácia desse princípio não depende de regras que o concretizem: do princípio da boa-fé, podem ser extraídas diretamente diversas situações jurídicas processuais. No caso, posso apontar duas: o direito à complementação do preparo substancialmente feito e o dever de o órgão jurisdicional determinar a complementação do preparo, como etapa prejudicial ao juízo de inadmissibilidade (não feita a complementação, o recurso não seria conhecido).
A interpretação de que § 2º do art. 511 não se aplica no âmbito dos Juizados Especiais, cuja lei não contém texto normativo idêntico, entristece também.
Ela revela a) a confusão entre texto e norma (não haveria norma sem texto), b) o desconhecimento sobre a função da regra do § 2º do art. 511 do CPC (tutelar a boa-fé) e c) a ignorância sobre a eficácia normativa do princípio da boa-fé processual, já reconhecido pelo STF como conteúdo mínimo do devido processo legal (sobre o assunto, ver editorial n. 45).
Essas críticas dirigem-se ao obter dictum da decisão.
A ratio decidendi não merece melhor sorte.
A afirmação de que a reclamação para fazer valer a orientação jurisprudencial do STJ, ajuizada contra decisão de turma recursal, só alcança discussões de direito substantivo não é correta.
Trata-se de uma distinção que se revela arbitrária e injustificável.
Diversas regras processuais gerais são aplicadas no âmbito dos Juizados Especiais. O próprio STJ, por exemplo, afirmou a competência da turma recursal para julgar mandado de segurança contra ato judicial (n. 376 da súmula do STJ). Pergunto: se porventura uma turma recursal reiteradamente passasse a reputar-se incompetente para processar tais mandados de segurança, não caberia reclamação perante o STJ? Será que o STJ deixaria que o enunciado da sua súmula virasse letra-morta? O exemplo basta para que se perceba como é artificial essa tentativa de filtro ao cabimento da reclamação lastreada na Resolução n. 12/2009 do STJ.