Editorial 114

Os recursos cíveis ensejam a realização de duas espécies de juízos: de admissibilidade e de mérito. É corrente a afirmação de que o primeiro exame desfruta de prioridade lógica sobre o segundo, já que o juízo de mérito somente será realizado se estiverem presentes os requisitos que tornam legítimo o exercício de tal atividade, verificados no primeiro juízo.
Para que o recurso seja conhecido, devem estar atendidos os chamados requisitos de admissibilidade, usualmente identificados como: cabimento, legitimidade, interesse, inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer, tempestividade, preparo e regularidade formal.

Dentre as diversas hipóteses concernentes à regularidade formal, algumas espécies recursais trazem a exigência de apresentação de peças obrigatórias e facultativas (cópias de folhas dos autos originais) pelo recorrente, como é o caso do agravo de instrumento contra decisão de primeira instância (art. 525 do CPC) e contra decisão de tribunal local que inadmite recurso especial ou extraordinário (art. 544, §1º, nas redações das Leis 8.950/1994 e 10.352/2001, anteriores à recente alteração promovida pela Lei 12.322/2010).

A ausência de cópia entendida como peça obrigatória (ou essencial à compreensão da controvérsia) costuma acarretar, como regra geral, o não conhecimento do agravo por irregularidade formal.

Ainda que, em muitas situações, parte da doutrina venha defendendo a possibilidade de intimação do recorrente, antes da inadmissão do recurso, para apresentação complementar dessas peças necessárias, a jurisprudência dos tribunais mantinha-se praticamente inarredável no sentido da inadmissão do recurso. Esse excesso de rigor na verificação (e, em certos casos, até mesmo na criação) de requisitos de admissibilidade ganhou força na última década, em fenômeno conhecido como “jurisprudência defensiva”.

A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, entretanto, alterou recentemente esse panorama, ao julgar, em 05.10.2010, o Agravo 1.322.327/RJ, em votação unânime que teve como Relator o Ministro João Otávio de Noronha.

Nesse precedente, o STJ mitigou o rigor da aplicação do §1º do art. 544 do CPC, que, no regime anterior à Lei 12.322/2010, exigia, para o conhecimento do agravo contra decisão de inadmissão do recurso especial, a apresentação de diversas peças, dentre as quais a cópia do “acórdão recorrido”, entendido este como o conjunto formado por relatório, ementa e voto do relator.

No caso em análise, as cópias juntadas pelo recorrente não continham a parte final da ementa. A despeito da irregularidade formal do agravo, o Ministro Relator destacou que a falta de parte da ementa não prejudicava, naquele caso, a compreensão da controvérsia jurídica, para a qual era suficiente a leitura do voto, cuja cópia havia sido devidamente apresentada. Asseverou, ainda, que a questão tratada no recurso especial era de relevância jurídica, econômica e social, razão pela qual o conhecimento e o provimento do agravo permitiriam que o STJ manifestasse sua interpretação sobre a lei federal e, assim, cumprisse sua missão constitucional. Com esse entendimento, a 4ª Turma do STJ admitiu o agravo e lhe deu provimento, determinando a subida do recurso especial.

A rigor, a vigência da Lei 12.322/2010 solucionaria o caso em exame, porque a dispensa da formação de instrumento no caso do agravo do art. 544 do CPC torna incabível a apresentação de cópias, já que os próprios autos originais serão remetidos ao tribunal superior.
Não obstante essa alteração promovida no art. 544, o precedente do STJ em análise ganha expressiva relevância porque mitiga a rigidez do juízo de admissibilidade, ao permitir o conhecimento de recurso ainda que ausente um dos requisitos de admissibilidade.

Esse julgado segue linha semelhante à idealizada no Projeto de Novo Código de Processo Civil, que consagra orientação no sentido da admissibilidade de recurso tempestivo ainda que ausente algum dos demais requisitos de admissibilidade, sempre que a decisão sobre o mérito puder contribuir para o aperfeiçoamento do sistema jurídico (art. 944, §2º, PLS 166/2010), como evidente corolário do princípio da instrumentalidade das formas. Dois dos autores deste texto, há tempos, defendem essa orientação no v. 3 do Curso de Direito Processual Civil (Salvador, Editora Jus Podivm, 8ª ed., 2010)

É de esperar-se, assim, que os tribunais, na linha do julgamento desse Agravo 1.322.327/RJ pelo STJ, passem a realizar o juízo de admissibilidade dos recursos com rigor menos excessivo, adotando essa orientação como regra geral, a fim de contribuir para a segurança jurídica, a isonomia e o aprimoramento do ordenamento jurídico.

Fredie Didier Jr
Leonardo José Carneiro da Cunha
Bruno Garcia Redondo

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