Editorial 112

O art. 126 do CPC estabelece que “o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”. Trata-se da reprodução do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que é de 1942.

O projeto de Novo CPC reescreve o dispositivo, com o nítido propósito de “atualizá-lo” metodologicamente. Eis a redação do Art. 108 do NCPC: “O juiz não se exime de decidir alegando lacuna ou obscuridade da lei, cabendo-lhe, no julgamento da lide, aplicar os princípios constitucionais e as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”.

A redação não é boa e, em certos aspectos, produz um retrocesso metodológico.
Princípio é norma, e não fonte de integração de lacuna. Princípios gerais do direito, a que se refere o enunciado, é expressão que ora é compreendida como os princípios gerais do direito romano (não lesar alguém; a cada um o que é seu; viver honestamente), compreendidos como fundamentos de normas, ora é vista como standard jusnaturalista. De todo modo, é expressão obsoleta. Não deve ser mais utilizada. Os princípios são normas de direito positivo e, nessa qualidade, devem ser aplicadas diretamente.

O recurso à analogia (técnica) e aos costumes (normas), para suprir lacunas legais, nada mais é do que a concretização dos princípios da igualdade e da segurança jurídica. Não há necessidade de remissão específica a ele em texto de lei, que de resto pode levar ao equivocado entendimento de que um costume somente pode ser aplicado diante da lacuna legal ou se não for possível a analogia. Pode acontecer de o costume ser exatamente a norma aplicável ao caso concreto. Cabe à ciência jurídica explicitar os métodos de interpretação e aplicação do Direito. Não é tarefa legislativa.

A proposta ainda dispõe que, no julgamento da causa, o juiz deve aplicar os “princípios constitucionais” e as “normas legais”.

A redação é ruim, por vários motivos.

a) Dá a entender que princípios não são normas, pois haveria os “princípios constitucionais” e as “normas legais”. Utilizam-se dois substantivos (princípio e norma) desnecessariamente, já que a relação entre eles é a de espécie (princípio) para gênero (norma).

b) O contraponto “constitucionais” e “legais” também é inconveniente, nos termos em que apresentado, pois o segundo adjetivo qualifica as normas e o primeiro, os princípios. Mantém-se a lei como paradigma da normatividade. A Constituição seria um conjunto de meros princípios, que não são normas. Não se pode, atualmente, como se sabe, negar a eficácia normativa da Constituição. O texto comentado, certamente sem este propósito, ignora essa circunstância.

c) A Constituição é um conjunto de normas: princípios e regras. Não há só princípios na Constituição. Rigorosamente, a Constituição possui muito mais regras do que princípios (Humberto Ávila). Assim, não há qualquer sentido jurídico em restringir a tarefa do órgão jurisdicional à aplicação dos “princípios constitucionais”. O órgão jurisdicional também deve aplicar as “regras constitucionais”, tão ou mais importantes do que as normas constitucionais principiológicas.

d) Ao determinar, que, diante da lacuna, o órgão jurisdicional deve aplicar, primeiramente, os “princípios constitucionais”, a proposta recai em erro comum: o de considerar que os princípios são normas que devem ser observadas antes das demais, como se fossem normas hierarquicamente superiores. Não é bem assim, ao contrário: as regras, se houver, são normas que devem ser observadas em primeiro lugar, exatamente porque, ao revelarem mais claramente a opção legislativa, preservam a segurança jurídica.

e) A redação também induz à incompreensão de que só há princípios na Constituição. Não haveria princípios “legais”. Não é bem assim, porém. Princípio é tipo de norma que pode ser extraída de enunciados normativos de qualquer espécie, constitucionais ou legais. Há muitos princípios legais (princípio da boa-fé processual, art. 14, II, CPC; princípio da menor onerosidade da execução, art. 620 do CPC etc.). Assim como da Constituição, da lei extraem-se princípios e regras.

Enfim, o texto há de ser revisto.

Sinceramente, sugerimos que ele seja simplesmente eliminado, pela sua desnecessidade e pela sua capacidade de gerar incompreensões.

No limite, deve ser reescrito. Eis a nossa proposta: “Art. 108. O juiz não se exime de decidir alegando lacuna ou obscuridade da lei”.


Fredie Didier Jr.

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