O parágrafo único do art. 472 do NCPC é texto normativo interessante. Merece ser examinado com cautela. Trata-se de dispositivo que tem por objetivo regular o modo pelo qual se deve apresentar a fundamentação de uma decisão judicial, nos casos de interpretação de textos normativos abertos e colisão de normas jurídicas.
Tem o inegável mérito pedagógico de despertar os aplicadores do direito para o necessário aprimoramento da fundamentação das decisões, em tempo de textos normativos tão indeterminados e de reconhecimento da força normativa dos princípios.
Antes de examiná-lo, convém tecer algumas considerações prévias.
Texto normativo e norma jurídica não se confundem. A norma é o resultado da interpretação de um enunciado normativo. De um mesmo enunciado, várias normas jurídicas podem ser extraídas; uma norma jurídica pode ser extraída da conjugação de vários enunciados; há normas que não possuem um texto a ela diretamente relacionado; há textos dos quais não se consegue extrair norma alguma. Enfim, interpretam-se textos jurídicos, para que deles se extraia o comando normativo.
Um enunciado normativo costuma ser composto de duas partes: a hipótese fática, em que se descreve a situação regulada pela norma, e o conseqüente normativo, em que se imputa um determinado efeito jurídico ao fato jurídico ali descrito.
Não é raro que, na elaboração de textos normativos, o legislador se valha de conceitos juridicamente indeterminados, com o claro propósito de transferir ao órgão jurisdicional a tarefa de concretização do sentido dessas expressões, caso a caso. Boa-fé, grave lesão, risco de dano, justo motivo, calamidade pública, repercussão geral etc. são alguns exemplos.
Há situações em que a indeterminação do texto normativo é ainda maior. Cláusula geral é uma espécie de texto normativo, cujo antecedente (hipótese fática) é composto por termos vagos e o conseqüente (efeito jurídico) é indeterminado. Há, portanto, uma indeterminação legislativa em ambos os extremos da estrutura lógica normativa. Devido processo legal, função social do contrato, função social da propriedade, boa-fé etc. são exemplos de cláusulas gerais.
Há, assim, uma relação próxima entre cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Cláusula geral é técnica de redação de enunciado normativo; conceito juridicamente indeterminado é elemento de texto normativo, presente na elaboração de uma cláusula geral, nada obstante possa haver conceito juridicamente indeterminado em outros textos normativos.
Por exemplo, o texto que regula a exigência de repercussão geral para o recurso extraordinário não é uma cláusula geral, porque, nada obstante a indeterminação da hipótese fática, o conseqüente normativo está claramente determinado pelo legislador: se houver repercussão geral, o recurso deve ser conhecido; se não houver repercussão geral, o recurso deve ser inadmitido.
Princípio é espécie normativa. Trata-se de norma que estabelece um fim a ser atingido (Humberto Ávila). Se essa espécie normativa visa a um determinado estado de coisas, e esse fim somente pode ser alcançado com determinados comportamentos, esses comportamentos passam a constituir necessidades práticas sem cujos efeitos a progressiva promoção do fim não se realiza (Humberto Ávila). Enfim, os princípios instituem o dever de adotar comportamentos necessários à realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o dever de efetivação de um estado de coisas pela adoção de comportamentos a ele necessários. (Humberto Ávila)
Cláusula geral é um texto jurídico; princípio é norma. São institutos que operam em níveis diferentes do fenômeno normativo. Um princípio pode ser extraído de uma cláusula geral, e é o que costuma acontecer. Mas a cláusula geral é texto que pode servir de suporte para o surgimento de uma regra. Da cláusula geral do devido processo legal é possível extrair a regra de que a decisão judicial deve ser motivada, por exemplo.
Feitas essas considerações, podemos examinar o texto jurídico do parágrafo único do art. 472 do NCPC, assim redigido: Parágrafo único. Fundamentando-se a sentença em regras que contiverem conceitos juridicamente indeterminados, cláusulas gerais ou princípios jurídicos, o juiz deve expor, analiticamente, o sentido em que as normas foram compreendidas, demonstrando as razões pelas quais, ponderando os valores em questão e à luz das peculiaridades do caso concreto, não aplicou princípios colidentes.
Como se pode perceber, embora a intenção tenha sido boa, a proposta está repleta de imprecisões.
Fundamentando-se a sentença em regras que contiverem conceitos juridicamente indeterminados. Confunde-se texto jurídico com uma das espécies normativas (regra).
Fundamentando-se a sentença em regras que contiverem (…) cláusulas gerais. Regras (normas) não contêm cláusulas gerais. Cláusula geral é texto jurídico do qual se pode extrair uma norma jurídica (regra ou princípio).
Fundamentando-se a sentença em regras que contiverem (…) princípios. Regras não contêm princípios. Regras e princípios são espécies normativas, que podem ser resultado da interpretação dos enunciados normativos.
O juiz deve expor, analiticamente, o sentido em que as normas foram compreendidas. O juiz deve expor o sentido em que o texto normativo foi compreendido e definir, com clareza, qual é a norma jurídica que pretende extrair desse texto. A redação, como se vê, precisa ser aperfeiçoada.
Demonstrando as razões pelas quais, ponderando os valores em questão e à luz das peculiaridades do caso concreto, não aplicou princípios colidentes.
Fredie Didier Jr.
Há dois problemas neste trecho.
Primeiramente, não há razão para restringir a possibilidade de conflito de normas aos princípios.
Pode haver conflito normativo entre uma regra e um princípio, entre duas regras e, obviamente, entre dois princípios.
Em segundo lugar, não convém misturar, em um mesmo dispositivo, dois problemas distintos: aplicação de textos normativos vagos e a solução do conflito entre normas jurídicas. Trata-se de problemas para cuja solução se exige metodologia diversa.
Devem ser tratados separadamente. Talvez tenha sido essa a razão pela qual o texto desse parágrafo único tenha ficado tão extenso, escrito em frase única, com inúmeros verbos normativos (expor, fundamentar-se, conter, compreender, demonstrar, ponderar), recheado de gerúndios. Os verbos são o núcleo do tipo normativo. Um texto tão longo, escrito com imprecisões técnicas óbvias e com o objetivo de solucionar problemas tão distintos, não pode conter tantos verbos.
De fato, como se disse, a proposta tem o mérito de despertar o aplicador para esses dois graves problemas da hermenêutica jurídica contemporânea. A solução, porém, não foi boa.
É preciso corrigir tecnicamente a redação e dividir o texto em dois dispositivos, que cuidem especificamente desses dois problemas da fundamentação das decisões: a) o sentido que se atribui a textos normativos abertos; b) a solução de conflito entre espécies normativas.