Editorial 107

O parágrafo único do art. 472 do NCPC é texto normativo interessante. Merece ser examinado com cautela. Trata-se de dispositivo que tem por objetivo regular o modo pelo qual se deve apresentar a fundamentação de uma decisão judicial, nos casos de interpretação de textos normativos abertos e colisão de normas jurídicas.

Tem o inegável mérito pedagógico de despertar os aplicadores do direito para o necessário aprimoramento da fundamentação das decisões, em tempo de textos normativos tão indeterminados e de reconhecimento da força normativa dos princípios.

Antes de examiná-lo, convém tecer algumas considerações prévias.

Texto normativo e norma jurídica não se confundem. A norma é o resultado da interpretação de um enunciado normativo. De um mesmo enunciado, várias normas jurídicas podem ser extraídas; uma norma jurídica pode ser extraída da conjugação de vários enunciados; há normas que não possuem um texto a ela diretamente relacionado; há textos dos quais não se consegue extrair norma alguma. Enfim, interpretam-se textos jurídicos, para que deles se extraia o comando normativo.

Um enunciado normativo costuma ser composto de duas partes: a hipótese fática, em que se descreve a situação regulada pela norma, e o conseqüente normativo, em que se imputa um determinado efeito jurídico ao fato jurídico ali descrito.

Não é raro que, na elaboração de textos normativos, o legislador se valha de conceitos juridicamente indeterminados, com o claro propósito de transferir ao órgão jurisdicional a tarefa de concretização do sentido dessas expressões, caso a caso. “Boa-fé”, “grave lesão”, “risco de dano”, “justo motivo”, “calamidade pública”, “repercussão geral” etc. são alguns exemplos.

Há situações em que a indeterminação do texto normativo é ainda maior. Cláusula geral é uma espécie de texto normativo, cujo antecedente (hipótese fática) é composto por termos vagos e o conseqüente (efeito jurídico) é indeterminado. Há, portanto, uma indeterminação legislativa em ambos os extremos da estrutura lógica normativa. Devido processo legal, função social do contrato, função social da propriedade, boa-fé etc. são exemplos de cláusulas gerais.

Há, assim, uma relação próxima entre cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Cláusula geral é técnica de redação de enunciado normativo; conceito juridicamente indeterminado é elemento de texto normativo, presente na elaboração de uma cláusula geral, nada obstante possa haver conceito juridicamente indeterminado em outros textos normativos.

Por exemplo, o texto que regula a exigência de repercussão geral para o recurso extraordinário não é uma cláusula geral, porque, nada obstante a indeterminação da hipótese fática, o conseqüente normativo está claramente determinado pelo legislador: se houver repercussão geral, o recurso deve ser conhecido; se não houver repercussão geral, o recurso deve ser inadmitido.

Princípio é espécie normativa. Trata-se de norma que estabelece um fim a ser atingido (Humberto Ávila). Se essa espécie normativa visa a um determinado “estado de coisas”, e esse fim somente pode ser alcançado com determinados comportamentos, “esses comportamentos passam a constituir necessidades práticas sem cujos efeitos a progressiva promoção do fim não se realiza” (Humberto Ávila). Enfim, “os princípios instituem o dever de adotar comportamentos necessários à realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o dever de efetivação de um estado de coisas pela adoção de comportamentos a ele necessários”. (Humberto Ávila)

Cláusula geral é um texto jurídico; princípio é norma. São institutos que operam em níveis diferentes do fenômeno normativo. Um princípio pode ser extraído de uma cláusula geral, e é o que costuma acontecer. Mas a cláusula geral é texto que pode servir de suporte para o surgimento de uma regra. Da cláusula geral do devido processo legal é possível extrair a regra de que a decisão judicial deve ser motivada, por exemplo.

Feitas essas considerações, podemos examinar o texto jurídico do parágrafo único do art. 472 do NCPC, assim redigido: “Parágrafo único. Fundamentando-se a sentença em regras que contiverem conceitos juridicamente indeterminados, cláusulas gerais ou princípios jurídicos, o juiz deve expor, analiticamente, o sentido em que as normas foram compreendidas, demonstrando as razões pelas quais, ponderando os valores em questão e à luz das peculiaridades do caso concreto, não aplicou princípios colidentes”.

Como se pode perceber, embora a intenção tenha sido boa, a proposta está repleta de imprecisões.

“Fundamentando-se a sentença em regras que contiverem conceitos juridicamente indeterminados”. Confunde-se texto jurídico com uma das espécies normativas (regra).

“Fundamentando-se a sentença em regras que contiverem (…) cláusulas gerais”. Regras (normas) não contêm cláusulas gerais. Cláusula geral é texto jurídico do qual se pode extrair uma norma jurídica (regra ou princípio).

“Fundamentando-se a sentença em regras que contiverem (…) princípios”. Regras não contêm princípios. Regras e princípios são espécies normativas, que podem ser resultado da interpretação dos enunciados normativos.

“O juiz deve expor, analiticamente, o sentido em que as normas foram compreendidas”. O juiz deve expor o sentido em que o texto normativo foi compreendido e definir, com clareza, qual é a norma jurídica que pretende extrair desse texto. A redação, como se vê, precisa ser aperfeiçoada.

“Demonstrando as razões pelas quais, ponderando os valores em questão e à luz das peculiaridades do caso concreto, não aplicou princípios colidentes”.

Fredie Didier Jr.

Há dois problemas neste trecho.

Primeiramente, não há razão para restringir a possibilidade de conflito de normas aos princípios.
Pode haver conflito normativo entre uma regra e um princípio, entre duas regras e, obviamente, entre dois princípios.

Em segundo lugar, não convém misturar, em um mesmo dispositivo, dois problemas distintos: aplicação de textos normativos vagos e a solução do conflito entre normas jurídicas. Trata-se de problemas para cuja solução se exige metodologia diversa.

Devem ser tratados separadamente. Talvez tenha sido essa a razão pela qual o texto desse parágrafo único tenha ficado tão extenso, escrito em frase única, com inúmeros “verbos normativos” (expor, fundamentar-se, conter, compreender, demonstrar, ponderar), recheado de gerúndios. Os verbos são o núcleo do tipo normativo. Um texto tão longo, escrito com imprecisões técnicas óbvias e com o objetivo de solucionar problemas tão distintos, não pode conter tantos verbos.

De fato, como se disse, a proposta tem o mérito de despertar o aplicador para esses dois graves problemas da hermenêutica jurídica contemporânea. A solução, porém, não foi boa.

É preciso corrigir tecnicamente a redação e dividir o texto em dois dispositivos, que cuidem especificamente desses dois problemas da fundamentação das decisões: a) o sentido que se atribui a textos normativos abertos; b) a solução de conflito entre espécies normativas.

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