Editorial 104

Neste momento, dedico-me a dois deles: o art. 102, I, NCPC, e o art. 104, NCPC.

De modo inovador, apresenta-se uma definição legislativa de litisconsórcio unitário: “será unitário o litisconsórcio quando a situação jurídica submetida à apreciação judicial tiver de receber disciplina uniforme”.

A definição é boa: está em conformidade com o que pensa a respeito a melhor doutrina. Define-se o litisconsórcio como unitário a partir de uma qualidade da situação jurídica submetida à apreciação jurisdicional. Opta-se, corretamente, pelo termo “situação jurídica submetida à apreciação judicial”, tecnicamente mais sofisticado, ao menos se comparado com aquele usualmente empregado: “lide”.

Nada obstante, é preciso relembrar uma célebre advertência: em se tratando de um conceito lógico-jurídico, como o é o de “litisconsórcio unitário”, não deveria o legislador avocar essa tarefa. Trata-se de opção arriscada. O próprio NCPC serve como prova desse risco.
Vejamos, por exemplo, a redação do inciso I do art. 102 do NCPC.

Neste artigo, deu-se nova redação ao atual art. 47 do CPC, que pretende determinar os casos em que o litisconsórcio é necessário: “Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo”.

A nova redação proposta foi elaborada a partir de uma premissa correta: era imprescindível corrigir o equívoco no texto anterior, que erroneamente relacionava a obrigatoriedade do litisconsórcio com a sua unitariedade, como se todo litisconsórcio necessário fosse unitário.
Não há qualquer óbice à existência de litisconsórcio necessário simples, de que serve de exemplo o litisconsórcio necessário na ação de usucapião de imóveis.

O litisconsórcio seria necessário quando fosse unitário (no pólo passivo, já que não é possível conceber litisconsórcio necessário ativo) e, também, quando, mesmo não sendo unitário, a lei expressamente assim determinasse. Havia o litisconsórcio necessário-unitário e o litisconsórcio necessário por força de lei.

Assim, de acordo com a proposta legislativa, será necessário o litisconsórcio: “I – quando, em razão da natureza do pedido, a decisão de mérito somente puder produzir resultado prático se proferida em face de duas ou mais pessoas; II – nos outros casos expressos em lei” (art. 102, NCPC).

Embora a ideia tenha sido boa (consertar a unanimemente equivocada redação do art. 47 do CPC), a sua execução não foi feliz.

O problema está na redação do inciso I do art. 102 do NCPC.

Tudo indica que a norma a ser extraída deste texto é a mesma que se extraía do texto anterior: quando houvesse unitariedade, o litisconsórcio seria necessário.

Não parece que a proposta visava a uma mudança normativa. O objetivo era tão-somente melhorar o texto normativo.

Sendo assim, muito mais simples seria dizer que o litisconsórcio será necessário quando for unitário. Como o próprio NCPC define o que é litisconsórcio unitário, no art. 104, não haveria maiores dificuldades na compreensão do art. 102. A redação mais clara não daria margem a interpretações heterodoxas.

A redação que foi proposta ao inciso I, porém, não prima pela clareza: o que significa uma decisão de mérito cujo resultado prático somente possa ser alcançado se ela for proferida em face de duas ou mais pessoas?

Não tenho ideia do que seja isso: uma decisão cuja execução (resultado prático) somente possa realizar-se se a decisão tenha sido proferida contra mais de uma pessoa?
E se porventura houver legitimação extraordinária, que permita a alguém defender em juízo interesses de mais de uma pessoa: o legitimado extraordinário é demandado, a decisão será proferida contra ele, mas será executada em face dos titulares dos deveres reconhecidos na sentença.

Se o que se buscava era tornar obrigatório o litisconsórcio nos casos de unitariedade, parece ter fracassado a proposta. É que a relação entre litisconsórcio unitário e necessário não é uma relação de causalidade, como se fosse uma relação natural: se é unitário tem de ser necessário, naturalmente. A relação é normativa, de imputação. Depende, portanto, de uma opção legislativa. Nada impede que o litisconsórcio seja unitário e facultativo, como alias ocorre nos casos de litisconsórcio ativo.

Sinceramente, não consigo ver a relação entre a possibilidade de resultado prático de uma sentença e a exigência de ela ter sido proferida contra mais de uma pessoa.

A redação remete-nos a uma tautologia: o litisconsórcio será necessário quando a decisão tiver de ser proferida contra mais de uma pessoa.

Se o objetivo era o de tornar necessário o litisconsórcio nos casos de unitariedade, bastava dizer isso, simplesmente.

Se, porém, o objetivo era o de criar uma nova hipótese de litisconsórcio necessário, é preciso refazer a redação, para deixá-la mais clara. Essa hipótese, de tão esdrúxula, não deveria sequer ser imaginada.

A redação proposta ao inciso I do art. 102 mais confunde do que esclarece. Tumultua o sistema em um ponto que não carecia de qualquer reformulação normativa (apenas mudança de texto, como já visto).

É preciso observar isso.

Fredie Didier Jr.

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