Lei Federal n. 11.417/2006. A reclamação contra ato que desrespeitou enunciado da súmula vinculante do STF (*).
A Lei Federal n. 11.417/2006 regulamentou a edição, revisão e cancelamento de enunciado da súmula vinculante do STF em matéria constitucional.
O legislador esclarece, inicialmente, que a utilização da reclamação, nessa hipótese, é sem prejuízo dos outros recursos ou meios admissíveis de impugnação (art. 7º, Lei Federal n. 11.417/2006). Há, assim, um cúmulo de meios de impugnação. Na verdade, considerando que não cabe reclamação contra decisão judicial transitada em julgado (Súmula do STF, n. 734), parece indispensável, em algumas hipóteses, que, para se ajuizar reclamação, seja interposto o recurso cabível, com o que se impedirá a formação de coisa julgada.
Muito embora a regra refira-se a medidas concorrentes contra decisão judicial ou ato administrativo, o referido diploma legal destinou mais atenção à reclamação contra ato administrativo que contrariar o enunciado da súmula vinculante.
Como técnica para evitar o acúmulo de reclamações no STF, foi imposta uma restrição, em princípio razoável, ao manejo dessa reclamação contra omissão ou ato da administração pública: exige-se o esgotamento das vias administrativas (art. 7º, § 1º, Lei Federal n. 11.417/2006).
A limitação, embora em tese razoável, e, portanto, constitucional, pode, em concreto, mostrar-se exagerada, quando, então, poderá ser afastada, em controle difuso de constitucionalidade, após a aplicação do princípio da proporcionalidade. O condicionamento do exercício do direito à jurisdição pode ser feito pelo legislador, mas não pode significar o aniquilamento deste direito. O exame do interesse de agir, relembre-se, exige a verificação das peculiaridades do caso concreto. Não se justifica constitucionalmente, à luz do direito fundamental à inafastabilidade (art. 5º, XXXV, da CF/88), qualquer regra legal que condicione o exercício do direito de agir a um prévio esgotamento de instâncias extrajudiciais, a pretexto de demonstração do interesse de agir, sem exame das peculiaridades do caso concreto. Não se pode, a priori, definir se há ou não interesse de agir. O legislador não tem esse poder de abstração. Utilidade e necessidade da tutela jurisdicional não podem ser examinadas em tese, independentemente das circunstâncias do caso concreto. Não é sem razão, aliás, que o interesse de agir deve ser concreto e atual, devendo dizer respeito a uma relação jurídica específica e individualizada, concernindo, ainda, a uma providência judicial determinada, tudo em decorrência do que constar da causa de pedir e do pedido insertos na petição inicial (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Interesse de agir na ação declaratória. Curitiba: Juruá, 2002, n. 3.2, p. 103).
Há ainda outro argumento. A Constituição passada permitia que, em relação a algumas matérias, se impusesse o esgotamento obrigatório das instâncias administrativas antes do ingresso no Judiciário art. 153, § 4o, da CF/1969 (A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de 180 dias para a decisão sobre o pedido.). A CF/88 não repetiu a ressalva. A mudança na redação dos dispositivos afasta qualquer interpretação no sentido de que esta imposição perdure nos dias atuais. A única imposição constitucional de esgotamento de vias extrajudiciais ocorre nas questões desportivas (art. 217, § 1º, CF/88). Não mais se admite a chamada jurisdição condicionada ou instância administrativa de curso forçado (sobre o assunto, DIDIER Jr., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 278-296).
Obviamente, não se quer dizer que sempre haverá interesse de agir na reclamação ajuizada sem o esgotamento da instância administrativa seria incorrer no mesmo erro: definir a priori o interesse de agir, em razão do direito fundamental de acesso ao Judiciário. É possível que essa condição da ação não se apresente em certas postulações, feitas sem a prévia provocação extrajudicial da administração pública. Caberá ao demandante expor a razão pela qual não pôde esperar a decisão administrativa, demonstrando a utilidade e a necessidade da intervenção do STF para corrigir o ato administrativo que contrariou o enunciado da súmula vinculante.
Interposto o recurso administrativo contra ato que contrariou o enunciado da súmula vinculante, caberá à autoridade prolatora da decisão impugnada, se não a reconsiderar, explicitar, antes de encaminhar o recurso à autoridade superior, as razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade da súmula, conforme o caso (§ 3º do art. 56 da Lei Federal n. 9.784/1999, acrescentado pela Lei Federal n. 11.417/2006).
O órgão competente para o julgamento do recurso administrativo deve explicitar as razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade da súmula, conforme o caso (art. 64-A, Lei Federal n. 9.784/1999, acrescentado pela Lei Federal n. 11.417/2006).
As regras são bem interessantes. É razoável entender, inclusive, que essas exigências dispensam as informações no procedimento da reclamação, providência prevista no art. 14 da Lei Federal n. 8.038/1990, e que, no caso da reclamação contra ato administrativo que desrespeitou enunciado da súmula vinculante, parece ter sido imposta como conduta extrajudicial obrigatória à administração pública.
Finalmente, acolhida pelo Supremo Tribunal Federal a reclamação fundada em violação de enunciado da súmula vinculante, dar-se-á ciência à autoridade prolatora e ao órgão competente para o julgamento do recurso, que deverão adequar as futuras decisões administrativas em casos semelhantes, sob pena de responsabilização pessoal nas esferas cível, administrativa e penal (art. 64-B, Lei Federal n. 9.784/1999, acrescentado pela Lei Federal n. 11.417/2006).
(*) Excerto do Curso de Direito Processual Civil. 3ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, no prelo, a ser publicado no final de janeiro de 2007.
Fredie Didier Jr.
Leonardo José Carneiro da Cunha
21 de dezembro de 2006.