Editorial 03

Veto à Lei Federal n. 11.382/2006. A impenhorabilidade relativa da remuneração de caráter alimentar e do bem de família. Crítica.


No direito brasileiro, o salário e o bem de família são relativamente impenhoráveis: podem ser objeto de penhora para garantir a execução de alguns créditos. O salário, no caso de execução de alimentos; o bem de família, em casos como aqueles previstos no art. 3° da Lei Federal n. 8.009/1990 (Lei Sarney): da execução de dívidas tributárias relativas a esse imóvel (em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à contrução ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; pelo credor de pensão alimentícia; para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar, por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação).


O projeto que acabou por redundar na Lei n. 11.382/2006 previa a ampliação das hipóteses de penhorabilidade do salário (remuneração de caráter alimentar) e do bem de família.


No primeiro caso, permitia-se a penhora de até 40% (quarenta por cento) do total recebido mensalmente acima de 20 (vinte) salários mínimos, calculados após efetuados os descontos de imposto de renda retido na fonte, contribuição previdenciária oficial e outros descontos compulsórios (§ 3° do art. 649). A razão de ser é óbvia: considerava-se um determinado valor como impenhorável, para garantir a sobrevivência digna do executado (R$ 7.000,00, hoje), e permitia-se a penhora de apenas 40% do que excedesse esse piso. Muito razoável. Há profissionais que chegam a ganhar cem, duzentos, trezentos mil reais por mês; é irrazoável e inconstitucional, por aniquilar o direito fundamental à efetividade, a impenhorabilidade de qualquer parcela desta remuneração. Pegue-se o exemplo de um salário de cem mil reais: poderiam ser penhorados 40% de R$ 93.000,00, o que equivale a R$ 37.200,00, restando R$ 55.800,00 (o correspondente a quase 160 salários-mínimos) naquele mês para que a sua sobrevivência digna fosse garantida. Os valores seriam ainda mais absurdos se considerássemos um mês de pagamento do décimo terceiro salário.


No segundo caso (bem de família), admitia-se a penhora do imóvel considerado bem de família, se de valor superior a 1000 (mil) salários mínimos, caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade. Perceba: poderia ser penhorado imóvel com valor acima de R$ 350.000,00, entregando-se ao executado este piso, com cláusula de impenhorabilidade, como garantia para aquisição de outro imóvel. A regra é razoabilíssima: o que justifica que imóveis que valem um milhão de reais, por exemplo, não possam ser penhorados para garantir o pagamento de créditos de valor às vezes muito inferior.


Trata-se de duas das melhores mudanças sugeridas pelo projeto de lei, que revelam uma guinada axiológica importante do direito brasileiro em favor do credor e do princípio da efetividade.


O Presidente da República, porém, vetou essas duas mudanças.


A fundamentação do veto é singela, errada, contraditória e lamentável.


De ínfimo tamanho, as razões do veto não enfrentam o fundamento principal das propostas de mudanças, que é a aplicação do princípio da proporcionalidade, para o equacionamento do conflito entre o direito fundamental à dignidade humana do réu e o direito fundamental à dignidade humana do credor (simbolizado na dificuldade de efetivar direitos seus por entraves causados pela legislação processual). Olha-se mais uma vez apenas para o devedor.


Erra o Presidente ao afirmar que há, no direito brasileiro, o dogma da impenhorabilidade absoluta das remunerações de caráter alimentar e do bem de família. Como visto, bastaria ao Presidente ler a redação original do CPC-73, a Lei Sarney e o § 2° do art. 649 do CPC, na redação que lhe deu a mesma Lei Federal n. 11.382/2006 (o Presidente vetou o § 3° do mesmo artigo e se esqueceu que o § 2° permitia a penhora de remuneração na execução de crédito alimentar).


É, ainda, contraditória: na pequena fundamentação do veto, o Presidente considerou razoáveis ambas as mudanças, mas ainda assim as vetou. São razoáveis, foram amplamente discutidas pela comunidade jurídica (como, aliás, ressaltou o próprio Presidente, para diminuir o prazo da vacatio legis), foram aprovadas no Congresso Nacional, mas, para o Presidente, é melhor vetá-las para que voltem a ser debatidas pela comunidade jurídica e sociedade em geral.


Lamentável. Sabe-se que o veto se deve à influência de um conhecido Senador, que emprestou seu nome à lei que torna relativamente impenhorável o bem de família, que, em discurso inflamado na tribuna do Senado, defendeu a permanência da antiga lei. Como ela deve servir de mote para seus discursos de campanha, ajudando-o a colocar-se como defensor do povo, o Senador estava atuando em legítima defesa. Demagogia, sempre ela. Como a nova lei somente autorizaria a penhora de imóveis de grande valor, preservando o núcleo essencial da proteção da moradia (lembre-se que trezentos e cinqüenta mil reais ficariam com o devedor), não sei em que medida as pessoas mais pobres seriam por ela afetadas (certamente banqueiros-executados com imóvel residencial no valor de cinqüenta milhões de reais, amigos de ex-presidentes, poderiam ser prejudicados). Preservação do status quo e retribuição de favores eleitorais e políticos talvez sejam as principais razões do veto.


O Presidente perdeu, mais uma vez, a chance de manter-se em silêncio.


Fredie Didier Jr.
09 de dezembro de 2006


 

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